Performance no Louisiana Museum of Modern Art (Humlebæk, Dinamarca), maio de 2012
Sinto que tenho aqui alguma competição, com este pôr-do-sol. Por isso, vou falar um pouco mais alto.
O que gostava de fazer é uma espécie de monólogo, que na verdade vem de um texto que escrevi em conjunto com arte visual, mas decidi livrar-me totalmente da parte visual e seguir apenas com o monólogo. Chama-se
Saying Water - Dizer Água
Há alguns anos, na sala de espera de um consultório médico, ouvi uma mãe a falar sobre como os seus filhos tinham medo disso. Se não conseguissem ver, não entravam. É como ser desmembrado. Quando se entra neste líquido escuro, uma espécie de leite sem nutrição, desaparece-se.
Desaparecimento: é por isso que os suicidas se sentem atraídos por ela. É também por isso que as crianças a temem. É uma entrada suave para simplesmente não estar lá. Quando imagino o rio, é algo em que consigo entrar, algo que me vai rodear, me vai levar para longe daqui. Mas depois a dor disso é menos imaginável, também. Menos do que violência ou química.
Pensar na água é pensar no futuro, ou num futuro. O meu futuro — o vosso. É uma coisa pessoal, sobretudo agora. Faz sentido que as crianças tenham medo da água em que não conseguem ver. E depois, também, não faz sentido que alguém que não consegue imaginar um futuro seja atraído para ela, para esta aparência de água, para esta outra água?
É de noite. A escuridão da água reflete a escuridão do céu. Mas quando chega a luz do dia a água permanece escura na mesma, separando tudo o que está dentro dela de tudo que está para lá dela.
A água é opaca. É reconfortante imaginar que a partir do momento em que se está nela, se deixa de ser visível e se deixa de ver alguma coisa, também, aliviada das exigências intermináveis da simples visão.
Escondida pelo escuro. É só a noite e isso passará. Mas o negrume da água não passará. O negrume e a água passam, mas nunca desaparecem.
A cor da água (seja ela qual for) muda constantemente. Metade dela é o céu.
A cor da água (seja ela qual for) muda constantemente. Metade dela é caqui: contendo todas as cores, apesar de nenhuma ser visível, e o seu todo indescritível. E de qualquer forma, não se consegue mesmo ver quando se está debaixo. Fica-me bem, bege; fica-me bem: não é uma cor; é como o branco, mas sem distinção. O bege é uma forma de mediocridade. O branco é importante, talvez uma espécie de labirinto, o que faz com que seja uma aposta para a vida.
Diz-se que é um rio. Consigo acreditar nisso. Mas quando se diz que é água, fico desconfiada. Será o Tamisa um erro de identidade?
Quando se diz água, o que se quer dizer?
Quando se diz água, está-se a falar do tempo ou de vocês?
Quando veem o vosso reflexo na água, reconhecem a água em vocês? Os desertos do nosso futuro serão desertos de água.
Qual é o aspecto da água?
Ver: areia. (Sobretudo dunas de areia.)
Saara. Ver: desertos, por exemplo o Gobi ou o Saara.
Todos conseguem ouvir-me? Estou só a verificar. Estou a chegar à parte boa agora.
Um homem foi de metro até Westminster Bridge algemado a uma cadeira. Atirou-se ao rio com a cadeira. Foi encontrado alguns dias mais tarde rio abaixo, preso a um pau de madeira e a uma seção de naugahyde (cor de amêndoa).
A água recebe-te, afirma-te, mostra-te quem és. E todas as qualidades quase imperceptíveis que são água provocam-te com a sua ambiguidade. Provocam-te e estendem-te para o mundo.
O Tamisa tem a taxa de suicídio mais alta de todos os rios urbanos. Bom, talvez não seja a mais alta, mas está próximo disso. E na verdade não importa porque mesmo que não tenha, parece que tem.
Recentemente, uma jovem parisiense veio para Londres para se afogar no rio. É estranho como o Tamisa atrai pessoas de longe. Nunca soube de outro rio que fizesse isto. Quero dizer, as pessoas não viajam do Canadá — nem de Ohio — para se matarem no Hudson.
A água negra é água opaca, tóxica ou não. A água negra é sempre violenta, mesmo quando se move devagar. A água negra domina, enfeitiça, subjuga. A água negra é fascinante porque é perturbadora e irreconciliável. A água negra é violenta porque é fascinante, e porque é água.
A escuridão reflete o sol. O negrume não reflete nada.
A escuridão reflete o sol. O negrume não reflete nada. (“Entre a dor e o nada, escolho a dor.”)
Do romance Palmeiras Bravas de William Faulkner.
O negro e a água são elementos gémeos. É um erro achar que negro é apenas um adjetivo.
O que sabem sobre a água? Quando falam sobre a água, sobre o que estão a falar realmente?
O que sabem sobre a água? Quando falam sobre a água, não estão na verdade a falar sobre vocês? Nesse sentido, não será a água como o tempo?
O que sabem sobre a água? Não fará isso parte do que a água é, nunca saber realmente o que é?
Oh, o que sabem sobre a água? Que está por toda a parte, tão familiar e ainda assim tão indefinível (uma espécie de tudo sem definição), nunca realmente compreensível, mesmo como cubo de gelo?
O que sabem sobre a água? Só que está por toda a parte de forma diferente?
Agarram-se à ideia da água, que é a água com que cresceram, cristalina e sexual. De alguma forma, isto faz parte da vossa identidade pessoal. Partilham-na com toda a gente, até com estranhos. É uma comunhão a priori.
A água é sexy?
Esta é a parte boa.
A água é sexy. É o seu poder e a sua vulnerabilidade; é a sua energia e a sua fragilidade.
A água é sexy. (A sua sensualidade provoca-me quando estou perto dela.)
A água é sexy. (Quero sentir a sua forma líquida a deslizar sobre a minha pele. Quero sentir a sua liquidez a lavar-me por todo o lado, a lavar-me toda. Quero sentir a sua massa fluida a correr entre as minhas partes: os meus pelos, os dedos da mão, os dedos dos pés, os olhos, as orelhas. Quero estar perto dela. Quero mergulhar nela. Quero entrar profundamente nela. Quero entrar ainda mais profundamente nela. Quero sentir o peso dela a aliviar-me, a confortar-me, a libertar-me.)
A água negra é leite negro.
O leite é leite se for negro?
A transparência não está para a água como a brancura está para o leite?
A água é sempre uma experiência espiritual. (Na companhia da água, sinto em mim a presença de coisas que me ultrapassam.)
A água é sempre uma presença misteriosa. (Quando se olha para a água, nunca se sabe para o que se está realmente a olhar.)
E que tal estas observações vagamente poéticas sobre uma outra água? A possibilidade de o poetizar — fará isso parte da condição humana? Melhorar algo horrível, algo ameaçador, algo tão insidioso e prolongado no seu perigo, porque não para o impedir que se veja?
É tão familiar e tão espetacular: os momentos em que a luz do sol acerta no rio e as faíscas cintilam e esvoaçam sobre a água. Surpreendem e fascinam como as estrelas. Imagino a escuridão que as envolve, um universo desconhecido e apenas a alguma distância do meu alcance.
Não vou falar sobre como a água é um espelho.
Sabem como um lago pode ser um espelho? Um espelho como numa casa-de-banho. Uma cena rural onde o sol se põe em par e veem na água parada do lago um reflexo imóvel e perfeito. E de qualquer das formas, esse tipo de espelho não faz parte da linguagem do rio. Certo, ocasionalmente pode haver uma noite em que a água está calma e as coisas se multiplicam como manchas, mas quase sempre as coisas não se duplicam em rios, e talvez haja um tipo diferente de solidão perto deles por causa disso.
Sabem a forma como caminham ao longo de um rio? Bem, não caminham à volta de um lago da mesma forma. Podem sentar-se à sua frente da mesma forma, mas não caminham. Caminham e o rio corre, veem as correntes ou os reflexos ou o que quer que seja. Pensam que talvez verão alguma coisa na água. Observam, à espera que algo surja. Normalmente nada surge, mas enquanto esperam são atraídos, os vossos pensamentos vagueiam, uma coisa leva à outra e assim por diante.
Sabem a forma como caminham ao longo de um rio? Caminham e o rio corre, veem as correntes ou os reflexos ou o que quer que seja. Pensam que talvez verão alguma coisa na água. Observam, à espera que algo surja. Mas sabem que se fosse um lago, estariam sentados. Se fosse um lago, não existiria este sentimento de antecipação, de descoberta iminente, de algo talvez horrível — ou valioso.
Há tantas pontes sobre o Tamisa — é uma floresta virtual. Nesse sentido, não é como nenhum outro rio. E são todas de uma escala tão convidativa e cheias de personalidade. Não são exatamente a barragem Hoover, mas quem é que se identifica com a barragem Hoover? Quero dizer, falo por mim. Quando se aproximam de Hoover, ou de qualquer outra massa de betão de quinhentas mil toneladas, não há nada a não ser distância entre vocês. Mesmo quando estão em cima dela, a barragem ainda é uma vista distante. E esqueçam o rio Colorado, quero dizer, onde é? Lá em baixo como o raio. (Setecentos e vinte e seis pés lá em baixo). Se não fosse a barragem, nem saberiam que havia um rio.
Há tantas pontes sobre o Tamisa — é uma floresta virtual. Nesse sentido, não é como nenhum outro rio. E são todas de uma escala tão convidativa e cheias de personalidade. De alguma forma, parecem incluir-me. E quando estou numa delas, o próprio rio parece de uma escala tão convidativa e cheio de personalidade. Sempre que me aproximo do rio, ouço-o a dizer: “Olá. Entra.” Ou: “Bem-vinda.”
Um homem de meia idade foi encontrado no rio na semana passada. Estavam 3,000 libras em notas coladas com fita-cola no seu peito, juntamente com instruções para o seu funeral.
O negrume é completo. Não deixa espaço para mais nada. Completo com uma pureza intocável. O negrume exclui tudo, incluindo vocês. Não podem participar dele; não lhe podem acrescentar nada ou afetá-lo. Saltar, entrar neste negrume, estar rodeado de algo que se reforma infinitamente, que só vos pode admitir ao ignorar-vos.
Diz-se que a água é inquieta ou calma. Diz-se que a água é agitada e inquieta. Diz-se que a água é perturbadora. Diz-se que a água é tranquila. A água é serena e por vezes cristalina; pode ser pura e então é brilhante. A água é pesada, é um fato. A água é muitas vezes tranquila, até plácida. A água é parada e depois pode ser profunda, também. A água é fria ou quente, gelada ou morna. Diz-se que a água é insolente ou brusca, por vezes energizante. Diz-se que a água é macia e dura. Diz-se que a água irrita e lubrifica. Diz-se que a água é podre. Diz-se que a água é fresca. Diz-se que a água é límpida e langorosa. Diz-se que a água é doce.
A água negra nunca é doce. A água negra é fria, muitas vezes rígida; fresca, muitas vezes, mas nunca morna. A água negra é dura, não é macia. É impulsiva e dura; pode irritar. Ainda lubrifica. É muitas vezes perturbada, mas nunca é calma; pelo menos, não simplesmente calma. Pode ser doce, mas nunca se sabe, e tenho a certeza de que nunca acreditariam. É muitas vezes agitada, é muitas vezes inquieta. Acho que não se pode questionar isso, mesmo quando aparenta ser calma. A água negra nunca é serena ou brilhante ou cristalina. É instável mesmo quando está parada. Pode ser profunda, mas é difícil perceber onde. Até a água negra é molhada, mas sobretudo de uma forma ressequida.
Sabem que esta água é imunda.
Mas não é estranha a forma como ainda se vai a lugares à volta dela? É verdade que se vai a lugares diferentes do que se estivesse limpa. Mas esses lugares são tão atraentes como a diversidade pastoral, não acham? Ou esta é a visão de uma pervertida?
Sabem muito bem que esta água é imunda. Mas é estranha a forma como mesmo assim se é atraído para ela? A forma como ainda se quer ficar por perto, observá-la.
Sei muito bem que esta água é imunda. É mais envolvente dessa forma, mais desconhecida.
Uma jovem mulher conduziu o seu Ford Fiesta amarelo por uma rampa abaixo até ao rio. Quando a polícia retirou o carro, todas as janelas estavam fechadas, e as portas estavam trancadas. Encontraram a mulher no banco da frente, e atrás Samuel, o seu cão (um setter irlandês), a trela enrolada à volta da mão dela.
A opacidade do mundo dissipa-se na água.
A água negra não consegue dissipar a opacidade do mundo.
Confusos? Perdidos? Grandes extensões de água são como desertos; sem pontos de referência, sem diferenças. (Se não souberem onde estão, podem saber quem são?) Apenas tumulto por toda a parte, infinitamente. Tumultos a modular para outros tumultos, por todo o lado e sem fim. A mudança é tão constante, tão dominante, tão incessante que a identidade, o lugar, a escala, todas as medidas diminuem, enfraquecem, desaparecem finalmente. Quanto mais tempo se passa perto desta água, mais esmorecidas se tornam as memórias da medida.
A água é uma combinação misteriosa do misterioso e do material. Imaginem uma coisa que, afetada por tudo, em contacto com tudo, permanece até hoje sobretudo transparente, até mesmo cristalina, quando consumida em quantidades pequenas.
A água é transparência derivada da presença de tudo. A água é transparência derivada da presença de tudo.
Quer dizer, a água é coada, filtrada pelo planeta, terra. Terra: aquífero que clarifica e produz pureza. Este filtro de tudo modula-se para um equilíbrio notável. É obtida uma substância sem igual. Todas as coisas convergem numa identidade singular única: a água.
A água é uma substância utópica. Entre a água? Não será a água uma forma plural? Como poderia alguma vez ser singular, até mesmo num rio? De onde veio essa água?
Em que rio matou Neil Young a sua miúda?
Ver a música “Down by the River:” (“Down by the river, I shot my baby… I shot her dead…) Ele não identifica o rio na canção.
O corpo de um homem de meia idade foi retirado do rio há dois dias. No bolso do seu sobretudo, a polícia encontrou um grande dicionário. Nos bolsos das calças e casaco, e numa bolsa apertada à volta da cintura, encontraram vários pedaços de ferragens — porcas, anilhas e parafusos, e 168 libras e 52 pence em moedas, pesando 32 libras.
Esta água existe em continuidade monolítica e indivisível com todas as outras águas. Nenhuma água está separada de nenhuma outra água.
No rio Tamisa, num iceberg do Ártico, na vossa bebida, naquela gota de chuva, naquela vidraça gelada, nos vossos olhos e em todas as outras partes microscópicas, microscópicas, de vocês (e de mim), todas as águas convergem.
A continuidade indivisível é intrínseca à água. Esta continuidade ultrapassa-nos ao mesmo tempo que é a maior parte de nós. É esta continuidade que torna o nosso efeito na água um efeito sobre nós. Ou seja: “Eu sou o Tamisa!” ou “O Tamisa sou eu!”.
Quando descem até ao rio estão a matar dois coelhos de uma só cajadada: ficam ali e vão a lugares.
Anidronidade.
Anidronidade é água sem água. O oposto da água. A forma permanece líquida, mas a substância encontra-se alterada — substituída por outra identidade. Anidronidade é água seca.
Anidronidade não é uma palavra reconhecível. A sua inexistência aponta para a dificuldade em aceitar o seu significado.
Quando se veem refletidos na água, reconhecem a água em vocês?
“O estuário do Tamisa estendia-se à nossa frente como o início de um canal interminável...Uma neblina pairava sobre as margens baixas, que corriam para o mar numa planura de desaparecimento. Sobre Gravesend o ar estava sombrio, e mais longe parecia ainda condensado numa escuridão lúgubre pairando imóvel sobre a maior e a melhor cidade do mundo”.
Ver: Heart of Darkness.
Os ingleses têm uma predileção por desmembrarem as suas vítimas de homicídio. Duvido que haja um período da história de Londres livre de cabeças, membros, e órgãos vitais encontrados no Tamisa, ou que foram trazidos para as suas margens. Na semana passada, a polícia encontrou intestinos e uma perna (não disseram se era a direita ou a esquerda). Perto de Silvertown: intestinos e uma perna.
Ontem li no Evening Standart: “Um transeunte reparou na cabeça e nos membros de um homem a sair do lodo...” Onze partes de corpo foram encontradas no rio, mas “notavelmente, não o torso.”
Onde está o torso?
As partes do corpo (vítimas de homicídio), corpos (suicídios, pessoas que saltam), esgoto (excrementos humanos), metais pesados (chumbo, mercúrio, cádmio, por exemplo). Garças e corvos-marinhos tornam o ambiente mais leve, mas não muito: apenas brevemente.
Há algum tempo, apareceu um artigo no jornal sobre um jovem que saltou de uma ponte. Amarrou a bicicleta, uma Phantom preta, ao seu peito, e saltou. (Foram precisos seis meses para identificar o corpo.)
Não é o que esperariam? Não é o que quereriam, perder a vossa identidade? O Tamisa parece um solvente de identidade.
Em que rio o Bruce Springsteen engravidou a sua miúda?
Ver: a canção “The River:”
(“…We’d go down to the river and into the river we dived, oh…down to the river we’d ride. Then I got Mary pregnant, and man, that was all she wrote…That night we went down to the river and into the river we’d dive….Is a dream alive if it don’t come true, oh is it something worse—that sends me down to the river, though I know the river is dry…”)
O meu olhar pousa sobre a água, em alguma zona do rio: aqui onde a água gira, onde as correntes fazem a água girar em círculos apertados. (Não consigo desviar-me destes círculos que apertam e giram.) Quero sentir-me torcida. E quero ver, quero sentir a torção do tempo à medida que vejo estas espirais a formarem-se. Quero sentir a torção do tempo e eu a girar enquanto os vejo desaparecerem. Quero torcer-me com a água que gira. Quero ver estas espirais ficarem invisíveis. Quero vê-las a girar da superfície, a girarem em direção às profundezas, onde não as consigo ver. Quero ficar invisível com elas. Quero girar com elas: invisível, e continuar a girar.
Ver: o poema “Domination of Black,” de Wallace Stevens.
O meu olhar pousa sobre a água, em alguma zona do rio: aqui onde a água gira, onde as correntes fazem girar a água em círculos apertados. Quero sentir-me torcido, quero ver estas espirais a inchar e a borbulhar e a expandir. Quero ver a água lisa à medida que ondulações espumosas se formam à sua volta. Quero ver à medida que a imobilidade da água inchada e macia vem. E na superfície dessa imobilidade, quero ver enquanto água de aspecto seco se lança sobre as suas profundidades, lançando-se com a textura intrincada que a água tem a esta temperatura e viscosidade e fluxo.
O meu olhar pousa sobre a água, em alguma zona do rio. E à medida que o meu olhar pousa parece que estou a ver alguma coisa que nunca vi antes. Como é que a água permanece tão estranha?
O teu reflexo desprende-se nesta água. Afasta-se de ti. Enquanto ficas ali na margem ou na ponte, indefesa, a ver o teu reflexo a flutuar rio abaixo e a desaparecer, podes perguntar-te o que força a água negra a juntar-se. Mas instintivamente já sabes que devem estar mais próximas da bruxaria do que da geometria.
“Best witchcraft is geometry.”
Ver poema nº 1158 de Emily Dickinson.
Lembram-se da jovem parisiense que mencionei antes? Encontraram um bilhete de suicídio no seu quarto de hotel dirigido à sua irmã. (Estava escrito em francês.) O bilhete referia em pormenor os seus problemas, incluindo os seus maus dentes. (Ela achava que tinha os dentes salientes.)
A polícia disse que isto os surpreendeu visto que, segundo eles, ela não tinha os dentes salientes.
Um rapaz é batizado num rio imundo (sob um nome falso). No dia seguinte regressa ao rio e atira-se, afogando-se.
Ver o conto “The River”, de Flannery O’Connor. Alguma vez repararam como a água camufla a luz?
Ouvi um relato, recentemente, de um jovem que se afogou no rio. Era surdo. Usava uma língua gestual inventada pelos pais. (Apenas a família compreendia.)
O rio lança uma sombra sobre si mesmo, transformando-se em si. As sombras e a terra engrossam a água com uma escuridão e distância que cortam através de tudo: a identidade, o lugar, a geologia. A água corre nas suas profundezas invisíveis, cheia de uma escuridão que não tem imagem.
O som do rio à noite é uma paisagem de possibilidades.
O som do rio à noite é uma paisagem de possibilidades. É preciso aproximar-se bastante para que se consiga mesmo ouvi-lo. Quero dizer, ouvir algo mais do que o barulho de fundo da sua corrida. E o que se ouve no escuro são sons delicados e indefiníveis. Sons que aí devem estar durante o dia, também, mas que não são ouvidos, abafados pela luz.
A água suspira. A água engole. A água lambe. A água marulha. A água salpica. A água balança. A água salpica. Salpicos de água. A água lava. A água respinga. A água chapinha. A água sussurra. A água acalma. A água corre. A água jorra. A água borbulha. A água murmura. A água gorgoleja. A água engole.
Conhecem esta cantiga?
“Blah, blah, blah, your hair, Blah, blah, blah, your eyes; Blah, blah, blah, blah, care, Blah, blah, blah, blah, skies.”
Da canção “Blah, Blah, Blah”, escrita por Ira Gershwin.
Provavelmente o Tamisa nunca foi cristalino, mas a sua falta de transparência significa algo diferente hoje do que significava há duzentos ou quinhentos anos.
Ontem li no jornal da tarde: “Na noite de 8 de julho, um homem que caminhava na orla marítima de Lower Pool tropeçou numa cabeça humana.” Para esconder a identidade da pessoa falecida, o artigo reparava que: A cara tinha sido esfolada. O corpo a que pertencia foi encontrado em pedaços no decorrer das semanas seguintes, uma perna aqui, uma mão ali. Levou um mês, mas a polícia encontrou todas as partes, incluindo o torso.
(A água é o verbo mestre: um ato de relação perpetua.) Já repararam como a luz camufla a água? Já repararam como a água raramente parece água? Qual é o aspeto da água?
Ver: camuflagem militar. Por exemplo, os padrões Polish Presidential,” “Italian Woodland,” “San Marco Mediterranean,” “Indonesian Spot,” e “Belgian Jigsaw”.
Em que rio matou Jimi Hendrix a sua miúda? Bom, não tenho a certeza se era um rio, mas provavelmente era.
Ver: a canção “Hey Joe”: (“I’m going down to shoot my old lady, you know I caught her messin’ round with another man…”)
“Take me to the river, drop me in the water.”
(No Tamisa, isto seria homicídio.)
Ver: a canção “Take Me to the River,” de Al Green.
Um congresso de pequenos pontos semelhantes a estrelas, bolhas, arco-íris infinitesimais, e reflexões muito bem feitas, ainda que rápidas. Efémeras entre outras efémeras de coincidência, dando visibilidade passageira ao temporário e ao transparente.
Não sei se já tiveram esta experiência, mas ocasionalmente quando estou a observar a água ouço fragmentos de várias canções a sair do rio. (Às vezes, até reconheço a voz.)
Ontem à noite, quando estava a observar a água, “Ain’t No Way” chegou a flutuar, lenta e infinita: “Ain’t no way...just ain’t no way, no...ain’t no way, baby...sure ain’t no way...just ain’t no way...ain’t no way, baby...”
Bom, conseguem perceber porque não sou cantora.
De “Ain’t No Way,” de Carolyn Franklin. A versão que estou a tentar cantar foi outrora cantada pela Aretha Franklin.
À luz, a água é água mais simplesmente.
A água reluz. A água cintila. A água irradia. A água lampeja. A água brilha. A água colhe. A água luze. A água reflete. A água pisca. A água faz faíscas. A água pestaneja. A água lampeja. Ondas de água.
Esta água está repleta de coisas desconhecidas: coisas indescritíveis, impronunciáveis. Às vezes, consolo-me imaginando todas as coisas na água. Consolo-me com esse horror. Não são só as coisas óbvias, como ratos e preservativos e esgotos. Isso é fácil de imaginar. Mas também tento visualizar os vírus e as bactérias, como a hepatite e a E. coli e a pequena bactéria da desinteria e cólera, e aquela doença chamada Weils e, quem sabe, talvez uma reminiscência da peste, a demorar-se por ali como as coisas têm tendência a demorar-se perto da água.
Então e o ouro? Todos os tesouros escondidos? Os anéis de casamento, por exemplo — ou os enchimentos em ouro?
Então e todos os químicos gregos que são a mitologia moderna: polifenóis, bifenilos policlorados, hidrocarboneto clorado, tricloroetano, e aquele tipo de coisas que dá bem para imaginar, mas vêm de todas as partes do mundo?
Então e todas aquelas prostitutas, inteiras ou em pedaços, que acabam no rio?
Então e as prostitutas? Já pensaram porque é que é tão comum encontrar prostitutas perto do rio, ou mesmo no rio?
História de rio: começa com uma cena que se passa ao longo de um rio, possivelmente o Reno. É verão, cedo de manhã, o sol está a levantar-se. A vista é sombria e escura. Um prostituto está a trabalhar na zona ribeirinha. Em breve, é engatado por um cliente e vemo-los a beijarem-se. Mas o prostituto fica aborrecido quando percebe que o cliente (que está vestido como um homem) é, na verdade, uma mulher. O cliente, cujo nome é Elvira, é espancado pelo séquito do prostituto. Mais adiante, percebem que Elvira nasceu homem. Para agradar ao seu namorado, mudou de sexo. Mas Anton não o queria como mulher. No final, Elvira suicida-se.
Ver: o filme In the Year of 13 Moons, de Rainer Werner Fassbinder.
Conhecem esta música?
“Blah, blah, blah, the moon. Blah, blah, blah, above. Blah, blah, blah, blah, croon. Blah, blah, blah, blah, love.”
Lembram-se do Psycho? Lembram-se do som do limpa-para-brisas? (Talvez fossem violinos.) Tinha esta espécie de insistência, esta insistência profética, a água do rio tem-na, também, sobretudo à noite. E essa insistência não tem de parar, da mesma forma que os rios não param. Na verdade, aqueles violinos não param, continuam, sem parar, na minha cabeça. Será que os rios realmente terminam?
Será que os rios realmente terminam? Mesmo enquanto aqui estão e observam o Tamisa a fluir para o Mar do Norte, para aí?
Será que os rios realmente terminam? Sabem que eles continuam, simplesmente, continuam com outro nome. Observando a água, sou assolada por uma vertigem de significado.
Observando a água, sou assolada por uma vertigem de significado. A água é a conjugação final: uma infinidade de forma, relação e conteúdo.
Um jovem ator afogou-se no rio há alguns anos. Tinha acabado de ser escolhido para interpretar o papel de Edgar Allan Poe numa peça baseada na vida do escritor. Recentemente, tinha falado com o autor da peça sobre desistir do papel de Poe e substitui-lo com um papel no qual faria de si próprio.
À chuva, ou sob um céu cinzento, num tempo que transmite pouca luz, a água é água menos simplesmente.
Quando chove, pequenos pontos semelhantes a moscas concentram-se brevemente na superfície do rio. Cada gota de chuva é um pedaço de escuridão do tamanho de um alfinete, um ponto que parece esvoaçar e desaparecer.
Em que estão a pensar? A chuva a cair sobre a água achata os reflexos e tranquiliza a vista.
Em que estão a pensar? A chuva a cair sobre a água é tão fascinante, tão calmante e meiga. O rio torna-se um prado, um lugar macio onde nos podemos deitar.
Quando chove, pequenos pontos semelhantes a moscas concentram-se brevemente na superfície do rio. À medida que cada gota de água toca na água, formam-se círculos minúsculos, geometrias efémeras de contato.
Em que rio tentou Hank Williams suicidar-se?
“I went down to the river to watch the fish swim by. But I got to the river so lonesome I wanted to die. Then I jumped in the river but the doggone river was dry…” Do album Low Down Blues.
Não se pode ver o negrume à noite, só a escuridão. É só durante o dia que se consegue ver o negrume. É aí que percebem que não é um reflexo.
Negro é um lugar. Não sei como é, não consigo vê-lo, mas sei que existe. Podem lá ir, apesar de não ter lugar fixo. O negro viaja bem, é inerte, incorruptível, como o ouro. E onde quer que esteja, é sempre igual. Nunca se sabe muito sobre ele, não revela muito (é essa a ideia de negro); é só preciso ir lá. O negro é onde se pode suspender a fé.
Quando olham para a água, veem o que acham que é o vosso reflexo. Mas não é vosso. (São um reflexo da água.)
Obrigado.
Performance at the Louisiana Museum of Modern Art (Humlebæk, Denmark), May 2012
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