A obra do artista norte-americano Tony Cokes filia-se numa longa tradição de trabalho com imagem em movimento que utiliza a relação entre a palavra, a escrita e respectivos mecanismos de leitura como elementos enformadores de objectos de cinema. Uma tendência que atravessa a arte do século XX, partindo das experiências cinéticas vanguardistas dos anos 1920 (que encontramos, por exemplo, nos filmes de Duchamp ou Man Ray), atravessando o cinema de expressão Situacionista, o experimentalismo pós-moderno em obras de artistas como Michael Snow, até ao “último sopro” de alguns dos mais influentes artistas dos nossos dias, pensando em Jean-Luc Godard.
O que torna, então, a obra de Cokes singular no contexto desta produção que vincula, formalmente, a arte do cinema à da palavra escrita e, frequentemente, literária? A resposta encontra-se no corpo compósito das suas criações que cruzam textos académicos, filosóficos, jornalísticos ou extraídos da cultura popular, com qualidades pictóricas e sonoras inconfundíveis.
Tony Cokes navega entre uma prática de videasta, de divulgador, de DJ e de investigador. E talvez por isso a etiqueta de “media artist” lhe sirva bem. Os seus filmes e instalações propõem uma semântica visual e sónica única, ancorada em mensagens que abrem a porta ao pensamento sobre questões políticas e históricas de vários tempos, colocando em estado de exame o valor hipermediatizado da palavra que nos intercepta em suportes digitais; e, dessa forma, questiona a questão da comodificacão da informação e seus canais de difusão e recepção. Na sua nova obra, desenvolvida para o Batalha (Testament E), Cokes dá-nos a ler, numa citação a Deleuze, “comunicação é um comando”.
Capitalismo, racialização, colonialidade e outros sistemas de poder opressores são alguns dos temas presentes e circulares dos seus filmes — textuais, coloridos, claros e frontais — que nos elucidam com pungência cromática, tipográfica, mas também musical.
Os seus filmes estão invariavelmente povoados por reconhecíveis temas do techno, do house e do pop, entre Derrick May, Kraftwerk, New Order ou Britney Spears. O som, e ainda mais o pensamento sobre a música, constituem-se como pilares do seu corpo do trabalho, como gestos celebratórios do património musical, e principalmente como personagens que ilustram a História e complexificam as suas narrativas, através de jogos de colagem surpreendentes e provocatórios. Alguns dos filmes abordam directamente o papel da música em processos de reconstrução política, expandindo as possibilidades de confluências culturais e da leitura de eventos. Em Mikrohaus, or the black atlantic?, que apresentamos no Foyer 2, vemos uma proposta que cruza a história do techno minimal europeu, as raízes afro-americanas do house de Detroit e o texto seminal de Paul Gilroy, The Black Atlantic. No início do filme, lê-se “Techno é o encontro entre George Clinton e Kraftwerk num elevador” (Derrick May).
No seu todo, a obra de Cokes empurra-nos quase sempre para o precipício do “progresso da História”, e das suas vítimas esquecidas (como registou Walter Benjamim e o fazem importantes pensadores negros contemporâneos, como Gilroy e Christina Sharpe), compondo actos de protesto, revisão, “remembrance”, e também de reparação de eventos passados. E, por isso, na distinção e bolsa que recebeu da prestigiada McArthur Foundation este ano, foi certeiramente descrito como um “artista único”, cuja obra é “capaz de mostrar o poder de trazer claridade e tonalidade à forma como vemos os eventos históricos, as suas pessoas e narrativas”.
No Batalha, apresentamos em vários espaços do Centro de Cinema algumas das suas obras mais marcantes e representativas, que acompanham o percurso do artista. Incluímos um dos seus filmes iniciais, realizado no final dos anos 1980, Black Celebration (filme de cunho documental e arquivístico, que parte dos escritos de Guy Debord para abordar manifestações das comunidades negras dos anos 1960 em várias zonas dos EUA), e várias instalações das últimas duas décadas que definem a sua semiologia, e onde encontramos o pensamento de figuras como Mark Fisher, Paul Gilroy, Judith Butler e Kodwo Eshun. E apresentamos Testament E, a nova obra que dá nome à exposição, num regresso do artista à palavra de Fisher. Partindo de uma palestra que o filósofo britânico deu em Zagreb há dez anos, Cokes propõe-nos um guia — também musical — para pensarmos as reviravoltas da história, as malaises do tempo presente, e os fantasmas que regressam para nos assombrar e toldar a visão de futuro.
©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits