Toda a arte é inesgotável, renovável, surpreendente na sua capacidade plástica. O cinema partilha naturalmente dessa abissalidade criativa. E, quando nos confrontamos com a necessidade de pensar um recorte — por exemplo, o cinema português — activa-se uma noção de procura do comum sem cristalizar a comunidade, do vaso comunicante que activa a seiva das ligações vitais. O que há de comum entre o cinema português?
Olhando a proposta lançada na primeira temporada de Seleção Nacional — uma programação e pensamentos constelares —, decidimos propor um contra-campo (e contratempo) dessa lógica relacional. Ao invés de olhar para cima, para as constelações, sugerimos observar e explorar em volta. Um gesto de programação que, à lógica extrativista de exploração do espaço, contrapõe, na (re)descoberta de filmes portugueses, uma lógica de remeximento da terra e demais elementos, de “repolinização” e “redistribuição” das sementes criativas e temáticas do nosso cinema.
Estas viagens de exploração, inspiradas quer no jovem Jim Hawkins de A Ilha do Tesouro (Robert Louis Stevenson, 1883), quer no mais experiente jogador de Final Fantasy VII, destinam-se a procurar tesouros e outros itens que permitam manter a energia e vida acima dos 90%. O referido comum do cinema português, imenso e fascinante território navegável, resiste, imune, a tentativas de doutrinação, domesticação canónica e formas de ler pedagogizantes e bem-comportadas. Assim, resta-nos aprender com os/as cineastas sobre como “ver melhor”, “escutar mais” e perceber o que “dizem as imagens umas às outras”.
Nesta viagem de redescoberta e renovação, ecoa a reflexão de Rachel Carson em Silent Spring, sublinhando a constante metamorfose num ciclo interminável de matéria e energia: “O solo encontra-se em constante mudança, integrando ciclos de matéria sem princípio nem fim.” Tal como esse solo, também o cinema português — aqui pensado como um organismo vivo e em transformação — se integra num fluxo contínuo, no qual o passado e o presente coabitam.
A nossa tarefa não será sugerir tesouros ou raridades, mas sim, como Aby Warburg, organizar um pensamento curatorial em torno de uma “lei da boa vizinhança” para que os filmes possam, eles mesmos, dialogar entre si (e os espectadores com eles) tirando partido do que de melhor têm a dar e a receber dos seus companheiros de estrada e sessão. Não nos focaremos especialmente na cronologia, na duração, nos géneros, nos temas ou sequer nas estéticas. A lógica será, por vezes, sensorial, não raras vezes anárquica, provendo essa contra-extração que desafia o útil e o produtivo. A experiência dos visionamentos em sala, das conversas em torno dos filmes, das hipóteses latentes e potenciais de diálogo serão a extensão da nossa cartografia imaginária de programação.
Primeira paragem: Subsolos
A primeira paragem da nossa viagem é junto do solo, nos subsolos. O programa Subsolos irá percorrer diversos territórios e transgressões do cinema nacional de diferentes épocas. Neste capítulo inaugural, procura abordar-se a ideia de que, num território tradicionalmente menos explorado pelo cinema português — a atmosfera do fantástico, do terror e sobrenatural —, vários cineastas portugueses procuraram semear no subsolo das codificações do género temas fundamentais para a compreensão das comunidades, dinâmicas sociais e psique no espaço português. Este segmento arranca com a exibição de uma “alucinação” do cinema mudo português, A Dança dos Paroxismos, com a sonorização ao vivo do projecto Ilusão Gótica e uma apresentação do investigador José Bértolo, que escreveu sobre a obra. Realizado aos 18 anos por Jorge Brum do Canto, este é um filme que, ao adaptar o poema “Les elfes”, do poeta francês Charles-Marie Leconte de Lisle, parece querer dialogar com a vanguarda francesa da época, além de ser uma fantasia bucólica wagneriana. Contudo, e aqui reside o seu interesse para o programa, no seu subsolo, em filigrana, estão os espaços e pessoas que fazem o filme, revolvendo a ruralidade portuguesa, as suas lendas e relações amorosas.
As duas sessões seguintes procuram, de uma forma semelhante, em espaços de trauma e superstição escondidos, abordar a violência latente sobre as mulheres no contexto da ruralidade portuguesa: em Mal Nascida, de João Canijo, é a figura da clássica Electra no subsolo de uma aldeia transmontana, reflectindo um país de silêncios e recalcamentos emocionais; em O Crime da Aldeia Velha, de Manuel Guimarães, o terror folk possibilita uma abordagem dos temas da superstição e da bruxaria, que permitem aceder à forma como as configurações da feminilidade e da “possessão” do homem sobre a mulher tomavam (tomam) lugar na realidade portuguesa.
Se há cineasta que habitou o subsolo do cinema português foi António de Macedo. A ele pertence a nossa quarta sessão. Os Abismos da Meia-Noite é um filme acerca do desaparecimento de um bibliotecário e um mistério envolvendo tradições populares, uma passagem secreta e um velho tesouro, mas também uma obra sobre a irrepetibilidade da vida e das relações que, subitamente, podem ficar trancadas no infinito.
Subsolos continua até abril com filmes de Bárbara Virgínia, Luís Noronha da Costa, Solveig Nordlund, entre outros cineastas.
Carlos Natálio
Carlos Natálio has a degree in Cinema and Law and a PhD in Communication Sciences. He has been working as a film critic, having co-founded the website À pala de Walsh in 2012, and as a programmer (IndieLisboa, Batalha Centro de Cinema). He has written about contemporary cinema, Portuguese cinema, cinema and technology and has produced several pedagogical workbooks in the context of various film education projects. He is currently a researcher at CITAR and a lecturer in Film History and Film Criticism at the School of Arts of the Catholic University of Porto.
Joana Gusmão
Joana Gusmão has a degree in Modern Languages and Literature (FLUP) and an MA in Text and Performance Studies (RADA/King's College). In 2014, she co-founded the production company Primeira Idade, where she co-produced Catarina Vasconcelos' documentary The Metamorphosis of Birds, among other projects. Between 2016 and 2021, she worked as production director and then executive director at the Doclisboa festival. In 2022, she became part of the Porto/Post/Doc festival team, working as a programmer and editor. She continues to develop her work in cinema, focusing on production, project development and programming.
Luísa Sequeira
Luísa Sequeira is a filmmaker, visual artist and film curator. With a PhD in Media Art, she works on different platforms, combining collage, archive and expanded cinema in her artistic practice. Her most recent works include All Women Are Maria, Rosas de Maio, Cine Constelação, O Que Podem as Palavras, A Luz da Estrela Morta, Quem é Bárbara Virgínia?, Os Cravos e a Rocha, Motel Sama, Limite and La Luna. Since 2010, she has been the artistic director of Shortcutz Porto and the Super 9 Mobile Film Fest. She also created and coordinated the television programme Fotograma and co-founded Oficina Imperfeita.
©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits