As Women See It + Maid Servant + Tobacco Embers + Is This Just a Story?
O Yugantar Film Collective (Coletivo de Cinema Yugantar, 1980–1983) foi fundando em Bangalore, na Índia, pela documentarista Deepa Dhanraj, a ativista Abha Bhaiya, a cineasta Navroze Contractor, e a escritora Meera Rao. A filmografia do coletivo, surgido num momento de transformação e convulsão política no país, constitui um arquivo notável que aborda questões interseccionais de trabalho e género, violência de classe e casta, exploração sexual e estruturas patriarcais. Trabalhando com formas participativas de produção cinematográfica, o ativismo do colectivo Yugantar nasce do contexto político e social da sua formação: o movimento estudantil radical dos anos 60, o movimento feminista indiano dos anos 70 e 80, e o rescaldo do Estado de Emergência da Índia (1975 a 1977), um período de violência de Estado, perseguição política, e campanhas de esterilização forçadas.
Um dos fios condutores comum aos quatro filmes em exibição neste programa é o desenvolvimento de um trabalho de proximidade com grupos de mulheres na Índia. O coletivo dá voz a mulheres trabalhadoras, registando o que acontece no terreno à medida que a sua politização se afirma. Como notou Deepa Dhanraj, “não chegámos a uma compreensão pré-determinada sobre a prática documental; estávamos a criar um processo à medida que trabalhávamos”. Ao longo deste processo, as mulheres partilham histórias de dor e resistência, expressam posições críticas, e debatem reivindicações políticas acerca das suas condições de vida. Pensar em conjunto torna-se um “evento coletivo”. As discussões que daí resultam traduzem-se em alianças e amizades que geram um poderoso ecossistema com repercussões para além dos próprios filmes. As cineastas captam a energia do discurso das mulheres: raiva, frustração, desacordo, negociação, solidariedade. O prazer da partilha torna-se um ato de intimidade radical e um exercício de ação coletiva. Nas palavras de Dhanraj, o modo como as mulheres falam sobre as suas vidas e sofrimento assenta numa prática colaborativa que encontra no ato de “escuta com total atenção” o seu potencial transformador. Ao reunir este material, o colectivo Yugantar pretendia que a circulação dos filmes na comunidade constituísse uma ferramenta para desenvolver outras formas de auto-organização e, assim, um modelo para a ação política feminista.
A experimentação formal dos filmes e as práticas ativistas que estiveram na sua origem são profundamente marcadas pelas experiências e narrativas destas mulheres. Filmados em 16 mm, cada filme explora questões que vão dos direitos laborais e submissão doméstica, ao efeito de políticas extrativistas em comunidades rurais e ecossistemas. A especificidade de cada contexto assume um papel decisivo: os espaços públicos e privados, a casa e a rua, o local de trabalho, a fábrica, o hospital, os prados e as florestas. Os filmes fazem um uso criativo de diferentes estratégias discursivas, desde cenas documentais a ficcionais (muitas vezes improvisadas) a reencenações, como a da greve na fábrica de tabaco, em Nipani. Molkarin (Maid Servant) centra-se nas trabalhadoras domésticas da cidade de Pune, e no seu processo de desenvolvimento de consciência política, associando-se a sindicatos na luta contra os baixos salários e condições de trabalho precárias: “Lavamos louça, roupas e gerimos as nossas casas. Os preços continuam a subir diariamente. Trabalhamos todo o dia, e mesmo assim não nos conseguimos dar ao luxo de comer duas refeições”, diz uma das mulheres. A densidade de Tambaku Chaakila Oob Ali (Tobacco Embers) advém da determinação de um grupo de trabalhadoras numa fábrica de tabaco em Nipani. Sujeitas a abusos físicos e verbais, e a suportar em silêncio a exploração sexual perpretada pelos seus directores, as mulheres reúnem-se para pôr fim à violência sistémica e fazer greve por melhores salários, uma luta que ganham. Desenvolvido com o coletivo de ativistas feministas Stree Shakhti Sanghatana, em Hyderabad, Idhi Katha Matramena (Is This Just a Story?) é um retrato ficcionalizado do colapso emocional e tentativa de suicídio de uma mulher, ao procurar lidar com o trabalho, os estudos, a maternidade, as obrigações domésticas, e uma família abusiva. As personagens e os diálogos do filme surgiram a partir de sessões de consciencialização, onde as mulheres discutem experiências dolorosas. Em Sudesha (As Women See It), o colectivo trabalhou com o Movimento Chipko, um grupo não-violento de mulheres que militantemente fizeram campanha contra a deflorestação das regiões rurais dos Himalaias. Como nos relembra a cientista e ativista Vandana Shiva, as florestas são sistemas de suporte vital e uma questão de sobrevivência para estas mulheres. Na sequência final de Sudesha, enquanto um grupo de mulheres se reúne antes de uma ação de protesto, discutem a reprovação por parte dos maridos das suas atividades políticas. À noite, enquanto tecem com luz escassa, ouvimos uma delas dizer: “Se estamos aqui todas juntas, porque havemos de ter medo?”
Ao captar o modo como as mulheres teorizam as suas lutas e planeiam estrategicamente a resistência, os filmes do colectivo Yugantar colocam questões sobre a relevância dos arquivos feministas, na atualidade, para uma política emancipatória e de solidariedade. Na verdade, expressam também uma esperança nas sinergias entre cinema, práticas documentais, ativismo, e justiça social.
Sofia Victorino
Bolseira da FCT no Doutoramento em História Contemporânea da FCSH, Sofia Victorino possui um mestrado em Contemporary Cultural Processes, pela Goldsmiths (Londres). Entre 2011 e 2021 foi Diretora de Educação e Programas Públicos na Whitechapel Gallery (Londres), assumindo funções ao nível da programação artística e curadoria. Anteriormente, foi Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves (2002–2011). Leciona no mestrado Curating Art and Public Programmes, da London South Bank University e integra o Conselho Consultivo da coleção Documents of Contemporary Art, coeditada pela Whitechapel Gallery e pela MIT Press.
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