Reanimação
Três Semanas em Dezembro, Laura Gonçalves + Água Mole, Alexandra Ramires e Laura Gonçalves + Elo, Alexandra Ramires + O Homem do Lixo, Laura Gonçalves
Como diz um amigo meu, “a animação tem sempre um lado de Deus”. Partimos do nada para construir um universo, ao contrário do que acontece na imagem real. É verdade que a Laura Gonçalves não faz exactamente isso, ela socorre-se de sons e memórias como carvão para o fogo com que pretende aquecer-nos, o que antagonicamente denuncia um sistema de valores conotado com aquilo a que chamamos humanidade. Ela não apenas reconstitui a memória através da animação, como se costurasse um novo tecido a partir de fios soltos, mas quer realmente agasalhar alguém com ela. O Homem do Lixo e Três Semanas em Dezembro são ambos filmes sobre a família, a genealogia, a ideia de raiz e de movimento, onde a memória vive e tudo o resto se ancora na sua crepitação. É uma recriação, nesse sentido, quase um subaluguer dessa função de Deus que lhe foi confiada através do exercício da arte da animação.
E aí já a Laura voga. Faz fluir as imagens ao sabor daquilo que entende destacável, relevante, não questionando a legitimidade dessa decisão arbitrária, intimamente ligada a um sentimento arbitrário, porque o seu xadrez é o prado da subjectividade, ou da intersubjectividade, uma vez que move nele não apenas as suas peças memoriais mas também as dos que nelas se enredam. Assume quase como uma concessão familiar para dar as cartas, ainda que as dê com uma ética precisa: a família, a tradição, a partilha íntima de memórias, tudo isso pode e talvez deva ser romanceado, quanto mais não seja pelo facto de o romance estar já inscrito na forma como a realizadora sente o que nos conta. A Laura aceita essa fatia de Deus. E então, focada nas pessoas, nos seus mundos fantasiosos, no que à mesa elas pescam em rios antigos, lateraliza a importância do cenário, do que de paradoxalmente, ao assim fazê-lo, cristaliza como realidade imaleável. A acção é tudo o que existe, mesmo que possamos ver nela abstracção enjaulada. E aqui temos uma definição concreta de ponto de vista. A Laura centra-se no espaço de vida que reverbera nela, que lhe acende o fio por trás dos pés e a faz caminhar para a frente. Há na Laura, parece-me, mais do que na Alexandra, uma vocação linear. Não somente aí, no dispositivo filosófico, na relação com o espaço-tempo, mas nas próprias dimensões técnica e estética do seu trabalho.
Em Elo, por exemplo, a Alexandra Ramires faz um pouco o que a Laura faz, mas não rejeita a paisagem, apenas a suspende do devir: o céu estrelado não se move, as personagens sim, e dentro delas, reclamando tridimensionalidade, é que o movimento se acelera e intensifica. Este já não é um documentário, já não nos serve memórias saídas do forno, ele questiona o nosso sentido do mundo, perscruta a aparente insondabilidade com dificuldades que nos são inerentes, como a de transcender um conceito de identidade pré-definido ou de subjectivar as fronteiras do corpo. E tem uma lunaridade interessante, misteriosa, de limbo para algo que está por vir. Tecnicamente irrepreensíveis, as duas cineastas tendem a dançar sobre a corda do paradoxo, na medida em que usam o movimento transformador de tudo como veículo de expressão de um apego. É o fundo do mar e o abismo do céu, unidos na ambiguidade da vida, tal e qual ilustra o último plano de Água Mole, filme que Laura Gonçalves e Alexandra Ramires fizeram juntas, onde a resistência sobrevive indefinidamente às circunstâncias. Um gesto poético de amor à humanidade, coisa de que Deus, na minha modesta opinião, não tem sido capaz. É bonito vê-las às duas unidas nesse gesto.
Marcos Cruz
Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, tendo sido júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.
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