As comunidades que se vagueiam na noite são uma espécie peculiar. Aquelas que trocaram o Sol pela Lua, escondidas entre as sombras, onde as luzes artificiais contornam a pele e qualquer pessoa pode ser algo que é proibido durante o dia. Nestes espaços, afrouxam-se os limites; o consentimento torna-se uma prática ativa, espera-se. Existem inúmeras formas de se deixar levar, e um bom clube faz o que está ao seu alcance para catalisar esta potencialidade.
Nunca me identifiquei como um club kid. Mas, para ser honesto, desde que me mudei para a Europa, há uma década, passei muito tempo entre as paredes de discotecas, com a cabeça dentro de colunas sub-graves, numa tentativa de chegar àquela profundidade de experiências que só reconheço nestes espaços. Mesmo que estes estejam longe de ser utópicos, a euforia que conseguem catalisar é uma combinação única de sistemas de som poderosos, DJs a definirem o tom, cocktails neuroquímicos e fantasias ocultas de felicidade comunal. Certos locais providenciam um lugar para a experimentação de uma muito necessária coletivização, encontrando-se à margem das redes capitalistas de um certo hedonismo masculino que se alimenta de uma normatividade sexualizada.
Playback: Ensayo de una despedida (2019) e Wildness (2012) são retratos de dois destes locais e das pessoas que os habitam como se fossem a sua segunda casa. Ambos os documentários focam-se em comunidades LGBTQI+ que encontram o seu lugar em bares que dão espaço ao poder transformador da vida noturna, em envolventes (fora da discoteca) que não são muito acolhedoras. Em ambos os contextos, a performance e a música tornam-se portais para a experimentação de uma vida coletiva, criando alianças e laços duradouros para a fermentação de um subcomum emancipatório. Playback é uma história sobre a perda. A realizadora Agustina Comedi elabora uma carta de amor às mulheres trans e drag queens que eram o animus de uma discoteca situada em Córdoba, na Argentina. Construído a partir de imagens de arquivo dos anos 80 do Grupo Kalas e de reconstituições imaginadas, o filme mostra as queens no seu auge, arranjando-se e preparando-se para as suas performances. Tudo isto é belo de testemunhar, mas a epidemia da SIDA começa a sentir-se, e a única sobrevivente do grupo é “La Delpi”. Agustina Comedi tece uma história comovente sobre como um clube pode funcionar enquanto espaço seguro e força unificadora para estas mulheres, abrigando-as da cidade católica e conservadora que as asfixia, e ao fazê-lo permite-lhes que brilhem como as performers que queriam ser.
Wildness, de Wu Tsang, é uma história de conflito não-intencional. O bar Silver Platter, em Los Angeles, casa das comunidades imigrantes latinas/LGBTQI+ desde 1963, torna-se o novo local para os eventos queer Wildness, organizados por Wu Tsang, NGUZUNGUZU e Total Freedom. Os seus eventos começam a deslocar a atenção das queens latinx, trazendo uma textura social completamente diferente para o clube. Apesar das festas Wildness pretenderem ser espaços seguros abertos para as comunidades marginalizadas que queriam dançar e apresentar performances, a sua crescente popularidade também começou, involuntariamente, a afastar as gerações mais velhas de mulheres trans. O que observamos com este filme é a reflexão de Wu Tsang acerca do deslocamento involuntário de uma comunidade queer de longa data devido ao aparecimento de outra mais recente, uma situação em que as boas intenções podem não ser o suficiente para assegurar que uma dinâmica social já estabelecida não seja negligenciada.
A par com o ciclo de cinema sobre clubbing, Maria Ferreira e Rodrigo Affreixo começaram o projeto Porto de Dança: Breve História da Cultura de Clube na Cidade (1974–2023). Este projeto lança um olhar às pessoas, lugares e acontecimentos que animaram a cultura de clube do Porto desde o final da ditadura portuguesa até hoje. Uma parte deste trabalho é um diagrama que traça os nomes e conexões, que serve como panorama geral para os inícios de uma história de clubbing da cidade do Porto. Ao contrário de Berlim, Nova Iorque, Chicago, Londres ou Manchester, a história do impacto da cidade do Porto na cultura de clubbing permanece, em larga medida, por escrever, tornando, por isso, este trabalho um desenvolvimento muito bem-vindo no adensamento das culturas mundiais de clubbing. O projeto também recolheu cartazes e parafernália que fornecem um retrato da cultura visual à volta da vida noturna desta cidade. Como alguém que chegou recentemente ao Porto, a riqueza deste trabalho aprofunda as raízes dos imaginários ainda em atividade através das especificidades do Porto enquanto cidade coma sua própria cultura de clube. À semelhança dos dois filmes deste programa, ser exposto às histórias da estética social em jogo nestas cenas locais permite um sentido mais amplo do potencial desta cena a que chamamos “clubbing”.
Lendl Barcelos
Artista, “katafísico” e DJ, Lendl Barcelos explora as matérias vibratórias, muitas vezes da dimensão aural, mesmo quando estas ocorrem para além dos limites humanos normativos. Ao lado de Tarek Atoui, Allison O’Daniel, Myriam Lefkowitz & Valentina Desideri, integrou o projeto Infinite Ear, baseado na premissa de que a surdez constitui uma especialização em som. Os seus trabalhos têm sido apresentados na Biennale Architettura XVIII (Veneza), Centro centro (Madrid), Garage (Moscovo), Inkonskt (Malmo), Q-O₂ (Bruxelas), Donau (Porto), e tem textos publicados por Urbanomic, re:press, MIT e Norient.
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