No seu primeiro filme, Chocolat, Claire Denis regressa à África francesa da sua infância. Estamos nos Camarões, um dos países onde ela viveu nos anos nómadas em que seguia o pai, funcionário do Estado. A protagonista, France, volta ao país onde cresceu e o filme conta, em flashback, uma história em miniatura sobre o domínio colonial. Por entre pequenas crueldades de parte a parte, o criado Protée (Isaach de Bankolé, tão bonito, quase uma máscara talhada à faca) é objeto do desejo da mãe de France: o erótico e o político confundem-se. Quando ele recusa submeter-se ao desejo da senhora, o seu lugar dentro da grande casa branca torna-se insustentável. É o homem que sabia demais.
Vários filmes de Claire Denis depois desse olharam para a herança do colonialismo do ponto de vista da metrópole: o fetichismo, a violência, a culpa. Mas 21 anos depois, ela volta a África para fazer este filme, White Material (em inglês, do calão local para “as coisas dos brancos”; por extensão, os próprios brancos). É um filme muito diferente. Enquanto em Chocolat ela parece pintar um quadro (as composições são medidas, a história segue um arco perfeito), aqui a sua intenção é mais urgente. Denis filma como quem documenta, como um repórter de guerra: a luz cai sobre as coisas sempre à espera do pior. É assim que o filme começa, com uma lanterna a varrer a noite. Le Boxeur, o líder dos rebeldes (Isaach de Bankolé outra vez, outra figura mítica), está morto (está na fase seguinte do seu mito). O que aconteceu? Segue-se um longo flashback em abismo, torto como um pesadelo. Toda a gramática do filme é usada contra a clareza: os cortes escondem saltos temporais para a frente e para trás. A paisagem é uma terra sem nome. A câmara vai apanhando fragmentos, ações, pedaços de corpos (mais nucas do que rostos). Mas, pouco a pouco, desenha-se uma pergunta: quando chega a hora de irmos embora de onde nunca fomos bem-vindos?
A família do ex-marido de Maria Vial (Isabelle Huppert, forte e frágil como um soldado) é uma antiga produtora de café na região. O café (como o chá, o açúcar e o tabaco, os combustíveis do Império) sempre esteve ligado à história da escravatura e do colonialismo. Mas, após a independência das colónias, a permanência dos produtores brancos cria um equilíbrio difícil: por um lado, criam postos de trabalho; por outro, exploram os recursos naturais e a mão de obra local. Quando a história começa, tudo lhe diz que chegou a hora de partir, mas Maria recusa-se. Um hábito torna-se um direito — à terra, ao negócio, àquela vida (na verdade, nada daquilo lhe pertence, mas foi-lhe confiado, é a missão dela: uma palavra militar). Claire Denis fala de White Material como a outra face da história dos imigrantes negros que vivem em França há muito tempo e, ainda assim, são vistos como intrusos. Aqui, uma família branca vive em África há muito tempo: “temos muitos ossos aqui enterrados”. Não serão ainda mais intrusos?
Huppert tinha proposto a Denis adaptar um livro de Doris Lessing, sobre a Rodésia dos anos 40, mas Denis recusou: se filmasse com ela em África, seria “uma história de hoje”. Anos depois, essa história tomou forma a partir de duas notícias, a de um oficial africano que se rebelou e a de produtores de café, franceses, aconselhados pelo exército francês a irem embora. White Material é o lugar onde estas notícias se encontram com a realidade da Etiópia, da Nigéria, de um continente que está, há décadas e quase continuamente, em guerra civil; onde há populações deslocadas (pelo conflito, pela fome, pela falta de água); onde os bandos de rebeldes lutam contra os podres poderes, mas, ao mesmo tempo, cometem todo o tipo de atrocidades; e onde estas crianças, que, por esperança ou desesperança ou para crescerem mais depressa, se juntam às suas fileiras (outro padrão de comportamento que se perpetua), acabam mortas às mãos do exército. Irmãos matam irmãos. Ainda assim, diz Denis, é fácil olhar para isto como um problema africano, como uma coisa de tribos, e nunca pensar na situação política e económica que se instalou no vazio pós-colonial, isto é, no vazio que nós lá deixámos.
Aqui, a desagregação da família e o fim da plantação espelham a corrupção das instituições (militares, políticas, sociais). O que pode Maria salvar? Certeira como um machado, ela quebra uma única vez: quando arrisca perder a imagem que tem de si própria (e diz uma coisa tão simples que sabemos imediatamente quem ela é). Claire Denis fala do filme como o espaço mental de Maria: nunca sabemos o que realmente aconteceu, o que é imaginado. É tudo uma febre, uma alucinação. Eu dizia que o filme se apresenta como um problema (formal, narrativo, moral), mas é por necessidade. White Material filma como um problema esse outro problema, a guerra civil. Quando o filme começa, a rebelião já acabou? Que diferença faz? O círculo fecha-se e continua a rodar.
Ricardo Braun
Licenciado em Som e Imagem pela UCP, Ricardo Braun foi assistente de dramaturgia e encenação de Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho e João Pedro Vaz. Em 2012, fundou a OTTO e coencenou Katzelmacher, a partir da peça e do filme de R. W. Fassbinder. Orientou o grupo amador do Ao Cabo Teatro, dirigindo-o em espetáculos a partir de textos de Jean Anouilh e Ben Jonson/Stefan Zweig. Traduziu, ainda, obras de Marius von Mayenburg, Lars Norén e Ödön von Horváth. Atualmente, leciona dramaturgia no Balleteatro e é livreiro na Livraria aberta.
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