Watermelon Man, Melvin van Peebles
Maria João Castro
3 de Fevereiro de 2023

Isto é a América?


Em 1970, num contexto social agitado por duras lutas pelos direitos civis, a Columbia Pictures decidia convidar o afro- americano Melvin Van Peebles (1932–2021), para realizar Watermelon Man, a partir de um argumento de Herman Raucher. A história era irrealista, mas eficaz nos seus objectivos: Jeff Gerber, um empresário branco da classe média, conhecido pelos comentários racistas e machistas, acorda, inexplicavelmente, negro. Van Peebles ficara famoso em alguns festivais de cinema pelo filme, realizado em Paris, La permission, sobre o romance entre um soldado negro americano e uma jovem francesa branca.

Herman Raucher pretendia fazer uma crítica ao racismo dissimulado e paternalista de uma classe média branca aparentemente liberal nos costumes, mas Van Peebles introduz uma enorme mudança ao fazer a opção genial de escolher como protagonista o comediante negro Godfrey Cambridge. A Columbia Pictures e Raucher pensaram em escolher Jack Lemon ou Alan Arkin para protagonista, o que resultaria num disfarce de negro em grande parte do filme e, no fim, haveria a redenção, porque, depois de um caminho de expiação, Jeff acordaria novamente branco, mas “curado” do racismo. Moralismo típico dos filmes de Hollywood.

Com a opção de Van Peebles é um actor negro que se disfarça de branco durante os primeiros dez minutos do filme. Nesta máscara usada por Cambridge, cuja interpretação roça a caricatura, há um ajuste de contas com a forma como Hollywood caricaturou durante décadas a população negra, escolhendo brancos para fazerem de negros ou exigindo aos actores negros que nas suas interpretações actuassem de forma estereotipada, e sempre humilhante, mas reveladora de um olhar racista. Um dos melhores exemplos desta “vingança” é a cena passada no café onde Jeff Gerber diz umas piadas racistas ao velho empregado negro, que ri de forma subserviente, apenas pela frente, mas que também goza com o boneco estereotipado daquele branco exuberante. É feita justiça ao actor Mantan Moreland, que durante os anos 30 e 40 fizera papéis secundários de negros de acordo com a visão estereotipada e racista de Hollywood.

O modo como reflecte e usa um humor corrosivo sobre a máscara racializada, que todos usam, faz da “branquitude” uma construção artificial e não a normalidade. Ser branco não é sinónimo de ser americano, mas sim de uma narrativa de privilégio que oprime e discrimina uma parte da população.

A escolha de um actor negro para protagonista evita a visão inicialmente proposta de que a negritude temporária fora apenas um “pesadelo”. Há um caminho que leva ao autoconhecimento do que significa ser racializado, ter uma identidade racial construída pelo olhar dos outros. A primeira reacção de Gerber é literalmente epidérmica ao tentar por todos os meios tirar o negro da pele. Tudo isto proporciona cenas e diálogos hilariantes típicos da sitcom, tal como o atribuir de culpas à lâmpada bronzeadora ou ao óleo de soja pela transformação ocorrida. A seguir, confronta-se com os seus próprios preconceitos quando percebe que passou a ser olhado e julgado de forma diferente, fazendo o que sempre fez. Correr atrás do autocarro a caminho do emprego já não é um acto bizarro, mas a hipótese de uma multidão o acusar de ladrão e poder ser preso pela polícia, entrar num restaurante de luxo deixou de ser possível e até a sua sexualidade é objectivada por uma norueguesa, supostamente liberal, que procura nele toda a narrativa construída da virilidade do homem negro e que ao ser rejeitada acaba a gritar insultos racistas.

Melvin Van Peebles faz também outra mudança drástica em relação ao fim do filme. Prometendo que ia filmar dois finais possíveis, acaba por apresentar apenas um. O protagonista ganha consciência do que significa ser negro e aceita esse facto e, a seguir, parte para a luta, empoderando outros negros como ele numa lógica de defesa do Black Power. Essa sempre fora a intenção de Van Peebles. Claro que continua lá a crítica à hipocrisia dos brancos aparentemente progressistas, mas cujo verniz liberal estala quando percebem que há um negro a partilhar o seu quotidiano. Althea, a mulher de Jeff, e os vizinhos são o melhor exemplo disso. Aliás, na lógica capitalista, a presença de um negro no bairro desvaloriza o preço das casas e há que afastá-lo pagando o máximo possível. Mas para Van Peebles a solução estava na acção dos próprios negros e essa é a mensagem final.

Outro aspecto interessante do filme resulta das inovações introduzidas pelo realizador: a estranheza dos ângulos inclinados durantes os diálogos, os filtros coloridos e até psicadélicos e, claro, a brilhante banda sonora (uma mistura de jazz, soul, funk e rap), escrita e cantada pelo próprio Van Peebles, que irrompe pelo filme acompanhada por grandes legendas, com destaque para o tema principal, Love, That’s America, onde se pode ouvir “People run through the streets, blood streaming from where they been beat, and declaring: naw, this ain’t America, you can’t fool me”. George Floyd lembra- nos que a dura ironia destas palavras permanece actual.

Este filme, audacioso para a época, acabou por ter algum sucesso comercial, mas Van Peebles preferiu optar pelo cinema independente recusando o contracto da Columbia Pictures para fazer três filmes. A carreira cinematográfica de Van Peebles ficaria ligada ao género blaxploitation, com protagonistas, música e temas afroamericanos e seria uma influência para Spike Lee e John Singleton.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Maria João Castro

Professora da ESMAE, Maria João Castro leciona as cadeiras de História da Cultura, do Teatro e do Cinema, Pensamento Político Contemporâneo, e Cultura e Ideologia. Mestre e doutoranda em História Política Contemporânea pela FLUP, é investigadora do CITCEM nas áreas da História da Cultura e do Pensamento Político Contemporâneo. É deputada na Assembleia da República, e dirigente e autarca do Partido Socialista no Porto. Desde 2020 que integra a Direção da Associação Amigos do Coliseu do Porto, entidade gestora do Coliseu do Porto.

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