Amor em tempos de cólera
Primeira mulher palestiniana a realizar uma longa-metragem, Annemarie Jacir prescinde dos louros pessoais em prol da liberdade de fazer o seu cinema. Ela sabe, de experiência própria, como as identidades estigmatizam. São mais um peso do que uma carta branca, mesmo que em certos contextos se afigurem úteis. Quando lhe perguntam a importância de ser uma mulher atrás das câmaras, ela responde desempoeiradamente: “Não acredito num cinema feminino”. E que melhor respaldo para este desarmar de conceitos separatistas do que os seus filmes, onde as ausências assumem protagonismo e o que não se diz fala tão fundo como o que se ouve? É o que acontece, mais uma vez, em Wajib, cujo enredo coloca um pai (Abu Shadi) e um filho (Shadi), que o são também na realidade, a circular de carro pela maior cidade palestiniana dentro de Israel, Nazaré, com o propósito de distribuir convites para o casamento da menina dos olhos do primeiro, irmã do segundo. O interior do veículo é o compartimento onde se dirimem duas raivas comuns, e a sua mobilidade metaforiza desde logo a fé de Annemarie Jacir no poder transformador da partilha. Abu viveu a lei marcial de 1949–1966, calou muito ao longo da vida para, pensava ele, manter a família unida, e é hoje um velho e respeitado professor na antecâmara da solidão, pois a mulher e o filho emigraram, cada um para seu lado, e a filha está em vésperas de se casar. Shadi chega de Roma com um pensamento idealista, desenraizado, não se coibindo de criticar o pai pela sua reverência a medos, regras e costumes que lhe parecem atávicos, enquanto este lhe devolve a incompreensão simétrica de o ver rendido a teorias e modas sem fundamento. Pouco a pouco, com o desenrolar deste peculiaríssimo road movie, concentracionário e sob o olhar sempre vigilante da cidade, há um conjunto de osmoses e metamorfoses que, postas já em marcha desde o início, se vão tornando claras. Desde logo, o fio de comédia que percorre uma matéria fílmica repleta de sofrimento e raiva contida. As visitas às casas dos familiares e amigos a quem a dupla de protagonistas entrega os convites de casamento são deliciosas, na diversidade de personagens e mundividências, contrária ao imaginário monocromático e taciturno que dali sistematicamente se exporta. Os silêncios entre Abu Shadi e o filho transitam de um para outro também com crescente compreensão mútua, ainda que o orgulho de ambos a preserve oculta. Um dos mais impactantes é o silêncio que cala a dor do pai pelo que entende como tendo sido a fuga da mãe, a quem deseja ardentemente ver de volta no casamento da filha. Ausente, a mãe de Shadi é a protagonista invisível, envolve tudo, como a cidade. Mas Wajib é um filme de encontro, mesmo podendo não haver correspondência, a esse nível, entre o corpo e o espírito. Sem nunca abandonar a fisicalidade prosaica dos convívios, a tradicional coreografia dos afectos, Annemarie Jacir leva-nos da larva à borboleta, na aventura do amor. Com uma sensibilidade e uma inteligência notáveis, a partir de um fundo de opressão e terror de Estado — outra ausência presente — ela desmaterializa o teatro de operações, aproximando o visível do invisível como proposta de método para alguma paz. Longe da cultura de cancelamento, Wajib encanta pela generosidade com que mergulha a fundo nos confins da alma humana e rejeita o julgamento sumário, em favor da troca de ideias e sentimentos. É bom ver que, num dos lugares da Terra onde mais compreensível seria o radicalismo colérico, há quem procure reconciliar o mundo com a linguagem do amor.
Marcos Cruz
Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto, integrou a redação do Diário de Notícias durante 16 anos, a maior parte dos quais como responsável pela secção de Cultura da delegação Norte. Colaborou com os jornais Correio da Manhã e Norte Desportivo e fez crítica de teatro, música e cinema, tendo sido júri em vários festivais de cinema do país. É autor do livro Os pés pelas mãos (Coolbooks, 2018). Atualmente, é copywriter na Casa da Música e organiza e modera um ciclo de debates no Coliseu do Porto.
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