A aplicação desigual de padrões dentro das estruturas legais, supervisionado por guardiões que incorporam um estilo kafkaesco, desempenhou um papel crucial na criação e manutenção de um pronunciado desequilíbrio de poder entre Israel e Palestina. Isto é evidente nas ações contínuas de Israel, incluindo na expansão de assentamentos e violações da vida, propriedade e direitos políticos dos palestinos, após as expulsões de 1948 e a formulação do plano de colonização sionista, assim como na Nakba contínua (desde 1948) — Lei do Ausente (1950); Lei da Prevenção da Infiltração (1954); etc. Tais práticas resultaram na fragmentação territorial, no confinamento da população palestina em áreas cada vez mais restritas e numa série de massacres, incluindo os atuais atos genocidas de Israel em Gaza, que nenhuma violência anterior pode justificar.
Apesar dos conflitos, a aspiração à definição de limites territoriais de um Estado-nação palestino persiste, ressaltando a resiliência de um povo determinado a alcançar a autodeterminação. Essa realidade foi subtilmente retratada nos filmes Nation Estate (2012), de Larissa Sansour, e In the Future They Ate from the Finest Porcelain (2016), com Soren Lind, assim como em
Foragers (2022) de Jumana Manna.
Estes filmes de artistas palestinas, nascidas ou descendentes, apresentam vozes femininas e experiências meditativas que exploram contestações políticas entre a libertação palestina e o estado israelita. A seu modo transmitem reflexões forçadas, mas deliberadas e contundentes, porém contundentes, sobre a complexidade de vidas sob ocupação e a lenta violência (material e imaterial) da militarização e do capitalismo dentro do contexto colonialista. Destacam como a lei apoia a destruição cultural, social e mental através de enredos fictícios, mas personagens e diálogos que apresentam situações e factos reais — mesmo quando projetados num futuro.
Contrastes sonoros, espaciais e conceptuais unem também estes filmes, servindo como elementos que transcendem fronteiras cinematográficas, ressaltando a importância não apenas da narrativa visual, mas também da experiência sensorial como um todo.
O filme Nation Estate de Larissa Sansour surge na sequência da tentativa palestina de obter o reconhecimento de Estado (nation-state) na Organização das Nações Unidas em 2011, um momento crucial na busca de soluções concretas, justas e duradouras para as preocupações de segurança na região. No filme, Sansour oferece uma visão satírica e distópica de uma futura delimitação de fronteiras, ainda sem solução, através de uma ótica arquitetónica e espacial. Representada por um edifício ficcional e colossal, mencionado no título, fortificado, embora praticamente despopulado, esta é uma visão que subverte o antagonismo e superioridade vertical do poder israelita, e tensiona o desequilíbrio entre a extensão (física e temporal) da ocupação no território e a contração do espaço palestino, forçado a desenvolver-se verticalmente.
Da interioridade do Nation Estate, dos túneis e checkpoints que lhe dão acesso, a câmara transita para a exterioridade do mundo projetado por Israel. Um mundo que In the Future They Ate from the Finest Porcelain, outra curta-metragem de ficção científica realizada por Sansour em colaboração com o autor dinamarquês Søren Lind, retrata de modo igualmente distópico, mas desta vez populado por manifestações conscientes de sujeitos, objetos e autores de narrativas opressoras. Utilizando imagens de computador (CGI), a obra cria uma peça visualmente sombria, com cenas reminescentes do cinema de horror e de animação surrealista inglês, proporcionando uma plataforma para a expressão da história de uma voz reprimida.
O programa culmina com Foragers, um filme de perseguição entre a Autoridade de Parques e Natureza de Israel e forrageadores de ervas da terra, espécies abrangidas por Leis de Proteção da Natureza de Israel (desde 1977): akkoub (similar à alcachofra) e za’atar (espécie de tomilho). Apoiando-se numa combinação de imagens documentais de arquivo e a reencenação de eventos, retrata o impacto da criminalização de uma prática que antecede o cultivo agrícola e os interesses comerciais soberanos impostos pelo estado israelita. Jumana Manna, a realizadora, segue as plantas de Bat Shlomo, legado colonial britânico, desde o campo até à mesa, pelas trilhas da disputa da legilação da natureza, fundamentada em paradigmas de extinção, até às salas de interrogatório onde a lei é promulgada como uma ferramenta que conflita com a necessidade de palestinos, sírios e árabes de sustento, de manter os seus hábitos e preservar a sua conexão com a terra. A câmara de Manna espelha as relações de poder das ideologias colonialistas, mimetizando o olhar da maquinaria do estado israelita, embora, na sua essência, filme amor, vida e (a coleta de) alimentos selvagens, testemunhos de resiliência.
Individualmente e em conjunto, estes filmes entrelaçam o político e o estético, através de dispositivos de ficção cartográfica permeados por uma determinação inabalável pela justiça e dignidade, da qual muitas famílias, vidas e liberdades dependem, lançando luz sobre um futuro incerto.
Joana Rafael
Joana Rafael é arquiteta e investigadora. Foca (questões de) ecologia, geografia humana e ciências naturais, abrangendo cultura contemporânea, estudos de média, arte e tecnologia, refletindo sobre os limites de infraestruturas em relação ao funcionamento do sistema terrestre. Concluiu p Doutoramento em Culturas Visuais, o Mestrado em Arquitetura de Pesquisa na Goldsmith (Londres) e o Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana Metropolis, do consórcio entre a Universidade Politécnica da Catalunha e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Faz consultoria para escritório de arquitetura e leciona na Escola Superior Artística do Porto.
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