Joanna Hogg, então próxima do círculo de Derek Jarman, inicia-se no cinema durante os seus estudos na National Film and Television School com a realização da curta-metragem Caprice (1986), uma das primeiras obras cinematográficas interpretadas por Tilda Swinton. Mas é com Unrelated (2007), opera prima no formato de longa-metragem, que a cineasta britânica cinzela, aos 47 anos, o seu cinema por vir.
Produzido com um orçamento modesto de 150 mil libras e filmado com uma câmara não-profissional, uma Sony Z1, Unrelated, tal como The Eternal Daughter (2022), o mais recente filme de Hogg, explora dinâmicas familiares e ficcionaliza elementos auto-biográficos. Anna (Kathryn Worth), uma mulher britânica de cerca de quarenta e cinco anos, como a realizadora no ano de produção do filme, visita uma amiga da adolescência, Verena (Mary Roscoe), durante as férias familiares numa villa na Toscana. O título — “Unrelated” ou, em português, “sem relação” ou “desconexo” — é, a vários níveis, eloquente tanto em termos da intriga e do sistema formal do filme, quanto das declinações da relação entre conteúdo e forma. No esquema narrativo de Unrelated, Anna é uma personagem desconexa, intermediária e intersticial, em devir, entre a juventude (o grupo de jovens e, sobretudo, Oakley, fulgurante estreia de Tom Hiddleston) e a maturidade (os adultos de meia-idade), a classe trabalhadora e a burguesia britânica, a noite e o dia, os espaços exteriores e interiores, o Reino Unido, país central, convocado através dos telefonemas ao seu companheiro, Alex, e as paisagens toscanas. Essa múltipla desconexão — ou a despertença — da protagonista arquitecta singulares configurações narrativo-temporais e espaciais.
Se a sua construção narrativa assenta num notável trabalho do episódico no interior de uma totalidade configuracional (a tecedura fragmentária de sketches, blocos e situações), bem como da elipse (note-se a dimensão elíptica do acidente e da contenda entre Oakley e o pai, em fora de campo sonoro), Unrelated apresenta-se estruturalmente como um círculo centrífugo. No início e no fim do filme, Anna chega e parte só da villa toscana, arrastando a mala. E essa circularidade — ou ciclicidade — não só empurra Anna para o núcleo expelindo-a em seguida para as bordas (numa das cenas finais, a personagem afirma que permanecerá “para sempre na periferia das coisas”), como também descentra o próprio campo representativo, territorial e temporal. Hogg opera além daquilo que é concretamente figurado, fazendo aflorar um fora de campo geopolítico e histórico: o eixo Norte/Sul e a história colonial do Reino Unido — manifesta, entre outros aspectos, nas modalidades de ocupação do espaço pelo grupo de turistas britânicos —, a par da história política de Itália, evocada através do sofá que pertenceu a Mussolini na República de Salò.
A desconexão de Anna assume paralelamente uma dimensão espacial, que encontra expressão formal na tensão entre campo, contracampo e fora de campo sonoro, bem como entre fundo e figura, na composição dos enquadramentos — a proliferação de “sobre-enquadramentos”[1], recortes do quadro no interior de outro (as geometrias das janelas e portas) — e na exploração da profundidade de campo. Nas primeiras sequências do filme, Anna é sempre filmada em plano geral ou médio, procedimento que destabiliza o princípio de individuação e, logo, retarda o processo de identificação do espectador com a protagonista. As posteriores variações de escala não implicam, porém, um menor isolamento da personagem. Se a estival aproximação rohmeriana entre Anna e Oakley nas cenas filmadas nas ruas de Siena, paradigmáticas de uma certa interpenetração entre os sistemas de representação da ficção e do documentário, suspende temporariamente tal lógica formal, esta é em seguida retomada, culminando na sequência em que o grupo familiar regressa a casa após a visita à mansão aristocrática, numa clara evocação de Le Charme discret de la bourgeoisie (1972), de Buñuel, assim como de Uccellacci e uccellini (1966), de Pasolini. Contudo, essa posição de desconexão, de soltura, confere a Anna um estatuto de observação e acção. Antes de mais, Anna é uma observadora do seu corpo, de um corpo que, progressivamente livre e desprendido, atravessa espaços, naturais e urbanos, opondo-se à imobilidade do grupo de meia-idade. Mas esse corpo atravessador, corpo em marcha e em interacção, é também um dispositivo de visão através do qual se tornam sensíveis as relações de classe: desde logo, de Anna com os seus anfitriões burgueses, mas também da família britânica (e da própria protagonista) com os trabalhadores italianos da Toscana, “regione rossa”. Neste sentido, ao centrar-se numa mesmidade (e não já numa alteridade) social e cultural, Unrelated define-se também como um filme auto-etnográfico.
O corpo observador de Anna é também um corpo observado — por Oakley, bem como pelo ponto de vista autónomo da câmara —, no quadro de uma concepção descontínua do espaço assente num princípio de multiplicação de perspectivas. E, se a depuração formal — em particular, o trabalho do plano fixo frontal e da duração — , bem como a contextura familiar, sobre o pano de fundo histórico-político, de Unrelated evocam o cinema zen de Ozu, também a proliferação de planos à primeira vista subjectivos de fragmentos de paisagem que não correspondem nem tão pouco reenviam à perspectiva de nenhuma das personagens, mas a um lugar vazio[2] (veja-se a sequência do rio), em ruptura com o princípio de continuidade narrativa, se inscreve na estética do cineasta japonês. Esses planos desconexos produzem auto-reflexivamente um descentramento do espectador da narrativa do filme e operam, em paralelo, uma disjunção[3] ou uma desconexão transitória entre conteúdo e forma. Deixando de assegurar, como no cinema clássico, uma função narrativa (e, sobretudo, de continuidade narrativa), desvinculados do ponto de vista das personagens e rompendo, aliás, o raccord entre campo e contracampo, os planos desconexos constituem uma instância de autonomização da forma relativamente ao conteúdo. Epítome da desconexão como mote e motor formal de Unrelated, esses planos afirmam-se como uma das principais marcas estilísticas — na esteira, aliás, de um cineasta como Robert Kramer em Cités de la plaine (2000) — do cinema de Hogg.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
[1] Aumont, Jacques e Marie, Michel. Dictionnaire théorique et critique du cinéma. Paris: Armand Colin, 2016.
[2] Moure, José. Vers une esthétique du vide au cinéma. Paris: L’Harmattan, 1997.
[3] Panofsky, Erwin. Die Renaissancen der europäischen Kunst. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1990.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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