Sara Gómez (1943–1974) foi, entre 1960 e 1974, a única realizadora do Instituto de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), o primeiro órgão cultural criado após a Revolução Cubana de 1959. Além de ser a única mulher realizadora de filmes no ICAIC, Sara Gómez era também negra e feminista, características que marcam de forma indelével o seu olhar. Durante os anos dourados do Nuevo Cine Latinoamericano (NCL), que tinha o seu foco na luta anti-imperialista, a primeira realizadora de cinema cubana imbricou problemas de género e de raça no grande ecrã, complexificando análises restritas a questões de classe.
De cierta manera (1974) é a única longa-metragem de Sara Gómez e apresenta-se como um “filme de longa-metragem sobre algumas personagens reais e outras de ficção”. Finalizado por Gutiérrez Alea e García Espinosa, só conseguiu estrear em 1977, três anos depois de estar pronto.
O filme abre num tribunal informal, que já no final se revelará um Conselho de Trabalhadores. Antes da decisão, há um corte brusco para a demolição de um edifício. O genérico é apresentado entre imagens de construção e demolição, que vão sendo abandonadas à medida que a câmara se aproxima das ruas e da população da periferia de Havana. Um narrador informa que se trata de Miraflores, um bairro muito pobre, que enferma de todas as piores heranças do capitalismo — desemprego e marginalidade — e onde a revolução pretende trazer casas, escolas e espaços de organização.
Yolanda (Yolanda Cuéllar) é uma jovem professora da classe média, culta, politizada e independente (divorciada), que vivia no centro de Havana e que está a trabalhar numa escola de Miraflores. Apesar do choque de descobrir uma realidade que pensava já não existir no seu país, Yolanda envolve-se com Mario (Mario Balmaseda), um operário que nasceu e passou toda a vida em Miraflores. Tal como Yolanda, Mario é um revolucionário, contudo, o seu comportamento entre amigos e companheiros de trabalho distancia-se do discurso de enobrecimento do trabalho propagado pelo regime. Além disso, Mario aspira tornar-se membro da Abakuá, uma sociedade secreta, com origem nas comunidades escravizadas, exclusiva para homens.
A relação entre Yolanda e Mario é o fio condutor da narrativa, que vai sendo interrompida por excertos documentais que explicam e adensam o que está em causa nas discussões do casal. Se Yolanda representa o lado bem-sucedido da revolução, Mario transporta consigo heranças de uma mentalidade que, segundo a ideologia revolucionária, será preciso erradicar para que um novo mundo possa emergir. Além da relação com Mario, Yolanda tem também uma relação com o bairro, através da escola, dos alunos, das mães dos alunos e colegas professores.
Embalado por maravilhosos momentos musicais e filmado com uma grande sensibilidade — que dignifica sempre os mais fragilizados, privilegiando pequenas histórias individuais, os rostos, os olhares e, por vezes, os sorrisos — De cierta manera coloca perguntas que desconstroem o edifício discursivo revolucionário. Por exemplo: desapareceram ou deveriam desaparecer todas as atividades e comportamentos considerados marginais? Quem define o que é a marginalidade? Como se relacionam marginalidade, pobreza e raça? Qual a condição das mulheres na Cuba pós-revolução? Qual o lugar do homem, nesta construção?
Como já foi dito, no final o filme regressa à cena inicial do tribunal, agora sob outro ponto de vista. Mário abandona o tribunal antes que a decisão final seja anunciada. De novo, as imagens-metáfora de edifícios construídos e demolidos. Não há respostas fechadas, apenas a necessidade de estar atento ao caminho e às suas contradições.
Una isla para Miguel (1968) faz parte da Trilogía de la Isla (1968–69), constituida por En la otra isla (1968), Una isla para Miguel (1968) e Isla del tesoro (1969).
A Isla de Pinos é um campo de reeducação para a construção do Homem-Novo. O início do filme é uma montagem de imagens de jovens que chegam à ilha. A determinado momento, a voz de um narrador informa-nos de que neste projeto de neocolonização da Ilha de Pinos os novos conquistadores encontraram uma dificuldade: das cidades chegaram muitos jovens entre os 13 e os 17 anos que, por serem muito violentos, foram chamados Vikings e que trazem apenas a moral da rua: ser homem, ser macho e ser amigo. É preciso reeducar estes jovens ensinando-lhes uma ética de trabalho.
Ana Cristina Pereira (Kitty Furtado) é crítica cultural empenhada na diluição de fronteiras entre academia e esfera pública. Tem curado mostras de cinema (pós)colonial e promovido a discussão pública em torno da Memória, do Racismo e das Reparações. Doutora em Estudos Culturais, pela Universidade do Minho, e investigadora do CECS, coordena o GT de Cultura Visual da SOPCOM e coedita a VISTA: revista de cultura visual. Com Rosa Cabecinhas, publicou o livro Abrir os gomos do tempo: conversas sobre cinema em Moçambique (2022).
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