Rostos da Guerra
As primeiras imagens de Tri (1965), de Aleksandar Petrović, são fortes. Fotografias, duras e cruas, da Segunda Guerra Mundial em território jugoslavo, acompanhadas pelo som das sirenes e, a seguir, da poderosa música sérvia. Pensamos que vamos ver um filme de guerra, género que o cinema jugoslavo alimentou, porque a força do regime de Tito se baseava, também, na narrativa da resistência heróica dos partisans e da sua vitória sobre os nazis.
Mas, embora a guerra permaneça como tela de fundo, este é um filme anti-guerra e procura mostrar como a liberdade e a dignidade humanas desaparecem ou são destruídas num contexto extremo em que impera o absurdo e a violência gratuita.
Esta abordagem menos óbvia da resistência e vitória dos partisans, com várias nuances, é típica do cinema jugoslavo da década de 60 do século passado, quando ganhou uma visível projecção internacional graças à qualidade de muitos filmes como este de Petrović. Muitos jovens realizadores tinham beneficiado do grande investimento estatal no cinema e de uma certa liberalização do regime comunista de Tito, que saíra da órbita soviética em 1948. Surgiram filmes inovadores, na linguagem estética e no conteúdo, criando o movimento Black Wave, de que Tri é um dos exemplos mais emblemáticos. Este movimento é claramente influenciado pelo Neo-realismo italiano e pela Nouvelle Vague francesa. Tal como os principais realizadores destes movimentos, Petrović também começou por se dedicar à crítica e ensaios cinematográficos onde preconiza um novo cinema jugoslavo.
A estrutura da narrativa de Tri é fragmentada, em forma de tríptico, escolhendo três momentos distintos no desenrolar do conflito bélico.
No primeiro episódio, o protagonista, o jovem Milos, refugia-se numa aldeia juntando-se à população, que, na estação de caminho-de-ferro, desespera por um comboio que os retire dali, perante o avanço veloz das tropas alemãs. A câmara percorre os rostos amedrontados e enraivecidos. Instala-se o pânico colectivo e somos confrontados com a desumanidade, e até o mal, que se instala. O exército jugoslavo insulta as pessoas, há a ânsia de encontrar um culpado, alguém que exorcize a derrota anunciada e isso acontece quando acusam um homem inocente de ser um espião, que acaba fuzilado, sem julgamento e sem provas. Milos tenta protestar, mas a sua voz é engolida pela multidão e acaba testemunha de uma morte absurda. É neste episódio que Petrović usa mais metáforas visuais, evitando os diálogos redundantes: o rebanho, o urso com açaime exibido pelo cigano, que não tem lugar quando o comboio chega, e a mulher que assiste a tudo à janela, impassível e resignada.
O segundo episódio ocorre no auge da guerra. Milos é um partisan que foge à perseguição implacável dos nazis pelas montanhas e pelos pântanos do delta do rio Neretva, perto do mar Adriático. Mais do que filmar o combate e os tiros, a câmara concentra-se no corpo e no rosto de Velimir “Bata” Živojinović, cuja interpretação intimista e intensa o tornou uma estrela do cinema jugoslavo. Num cemitério abandonado encontra outro fugitivo, abandonado pela sua unidade por estar ferido, que confessa estar com medo — e sentem-se cúmplices. E, subitamente, o outro fugitivo sacrifica-se a ser morto pelos nazis para que Milos possa escapar, e para que o fugitivo possa olhar de frente os seus executores — que, no entanto, preferem queimá-lo vivo. Os gritos desesperados de Milos funcionam como as legendas perfeitas para mais uma morte cruel e absurda que ele não consegue impedir.
A cena final passa-se no fim da guerra. Milos é um oficial do exército jugoslavo vitorioso e mais uma vez a morte absurda vem ao seu encontro, quando se confronta com um conjunto de prisioneiros acusados de colaboracionismo com os ocupantes nazis à espera de serem executados. Há um momento de hesitação quando o olhar de Milos se cruza com o de uma jovem prisioneira. Mas as provas contra ela são irrefutáveis e Milos nem se esforça por salvá-la, mesmo percebendo que, tendo a guerra acabado, estas mortes são mais um absurdo.
É o olhar do protagonista que interliga estas histórias, um olhar de espectador passivo que, efectivamente, nunca consegue intervir. A câmara insiste em fixar-se, por vezes em close-up, no rosto do actor principal, que nos oferece um olhar desgastado, e por vezes sem emoção histriónica, porque a guerra é um fardo, sem heroísmos, mas apenas com desumanidade, desperdício e absurdo. Por isso, este filme evita o sentimentalismo e os grandes recursos cinematográficos, optando por uma grande economia de meios. E destaca-se a bela cinematografia a preto-e-branco de Tomislav Pinter, lembrando-nos muito do Neo-realismo italiano. A câmara deambula também entre os rostos anónimos das vítimas involuntárias de uma guerra, permitindo-nos perceber a variedade étnica existente naquele território, e é a expressão de resignação perante a violência gratuita do conflito bélico que predomina, sendo diminuta a presença de longos diálogos. A imagem realista ou poética e o material sonoro (destaque para a bela música sérvia) predominam sobre a palavra.
Este retrato sobre a guerra como território da bestialidade, do desperdício e do absurdo, mas visto a partir do olhar de um protagonista que nunca consegue controlar o seu destino, acabando por ser testemunha, vítima e também agressor passivo, faz deste filme uma obra de arte que, no contexto actual de uma nova guerra em território europeu, o transforma, também, num murro no estômago.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
Maria João Castro
Professora da ESMAE, Maria João Castro leciona as cadeiras de História da Cultura, do Teatro e do Cinema, Pensamento Político Contemporâneo, e Cultura e Ideologia. Mestre e doutoranda em História Política Contemporânea pela FLUP, é investigadora do CITCEM nas áreas da História da Cultura e do Pensamento Político Contemporâneo. É deputada na Assembleia da República, e dirigente e autarca do Partido Socialista no Porto. Desde 2020 que integra a Direção da Associação Amigos do Coliseu do Porto, entidade gestora do Coliseu do Porto.
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