Tornar-se um Homem na Idade Média + Crimes of the Future
Giovanni Marchini Camia
9 de Setembro de 2023

Quando, no início de 2021, se espalhou a notícia de que David Cronenberg se encontrava a preparar um filme chamado Crimes of the Future, isso chamou a atenção para uma média-metragem relativamente obscura com o mesmo título que filmou em 1970. Cronenberg foi rápido a apontar que não iria refazer um dos seus primeiros trabalhos, raramente visto. De facto, o filme que estreou no Festival de Cinema de Cannes um ano mais tarde tinha pouco em comum com o seu predecessor em termos de trama ou de forma. Partilhava, contudo, várias ideias, não apenas com o seu homónimo, mas com todos os filmes de Cronenberg que exploram o vasto potencial do corpo humano para o horror e o êxtase.

Quase como um álbum de grandes êxitos, o novo Crimes compreende um catálogo de imagens de marca Cronenbergianas: o abdómen com zipper de Vigo Mortensen lembra a entrada do aparelho de vídeo no estômago de James Woods em Videodrome (1983), a ideia jocosa de um “concurso de beleza interior” vem emprestada de Dead Ringers (1988), a tecnologia e o sexo interligam-se de formas que lembram tanto Crash (1996) como eXistenZ (1999), e por aí fora... O que é mais notável quando se assiste agora ao Crimes original é perceber quantas preocupações teóricas que guiaram e definiram a obra de Cronenberg já existiam de forma embrionária no início. É como se, depois de primeiro as ter traçado, ele tivesse passado anos a experimentar combinações diferentes, deixando-as crescer e evoluir em filmes individuais para, depois de cinco décadas, compilar os resultados e avaliar a relevância do seu trabalho à luz do presente.

Esta noção do realizador enquanto cientista faz sentido quando consideramos que Cronenberg não chegou à realização através dos caminhos habituais: não teve uma experiência epifânica de cinema numa idade impressionável, os seus pais não lhe ofereceram uma câmara de 8mm quando era criança, não estudou cinema na universidade (a disciplina nem sequer existia no Canadá na altura). Enquanto crescia, as suas paixões eram a ciência e a literatura. Por essa razão, inscreveu-se primeiro num curso de ciências, achou-o demasiado monótono e mudou para Inglês, começando então a fazer filmes à parte depois de descobrir os filmes de outros estudantes. Após duas curtas-metragens, Transfer (1966) e From the Drain (1967), que agora menospreza “do ponto de vista artístico, são tão más... estava tudo errado”), fez duas longas-metragens underground: Stereo (1969) e Crimes. Obras complementares, são ambas filmadas em 35mm, têm uma duração de pouco mais de uma hora, e empregam estratégias formais muito semelhantes. Ao passo que Stereo se foca num grupo de telepatas, Crimes imagina uma sociedade do futuro atormentada por mutações físicas. Juntas, representam o dualismo cartesiano da mente e corpo que tem fascinado o cinema de Cronenberg desde então.

Crimes foi a última vez que Cronenberg trabalhou de um modo experimental antes de se voltar para o cinema comercial. Chamou amigos para o elenco e realizou, escreveu, produziu, filmou e montou o filme sozinho. O facto do som ter sido pós-sincronizado foi talvez motivado pelo desejo de manter uma equipa de uma só pessoa, visto que é virtualmente impossível operar uma câmara e gravar som decente ao mesmo tempo. A história é narrada em voz off pelo protagonista, Adrian Tripod, e a banda sonora alterna entre períodos de silêncio e gravações de animais e sons aquáticos. Tem-se a sensação de ver as personagens por detrás de um vidro, como espécimes apresentadas para estudo. Apesar da narração verborrágica e comicamente rebuscada ainda trair as raízes literárias de Cronenberg, também contém elementos infinitos que elaboraria cinematograficamente nos anos que viriam inspirando, por fim, o termo “Cronenbergiano”.

Que este termo deva ser evocado por um filme diferente do ponto de vista estético e filosófico como Becoming Male in the Middle Ages (2022), de Isadora Neves Marques, testemunha a relevância da visão de Cronenberg. A perturbadora imagem de abertura de um saco de carne ensanguentada e a revelação que sucede de que é feita em laboratório e por isso (pode dizer-se que é) vegan, é uma piada que faria todo o sentido num filme de Cronenberg. Como faria igualmente sentido a ideia de transplantar ovários para um homem cis, que depois produz óvulos para serem usados in vitro, assim ficando um passo mais próximo de cumprir a esperança de uma gravidez masculina. De facto, esta última proposta coloca o filme em diálogo direto com o Crimes original, no qual a sociedade sem mulheres se encontra em risco de extinção.

Um certo determinismo biológico informa o cinema de Cronenberg e valeu-lhe o rótulo de reacionário da parte de alguns críticos queer e feministas. Em contrapartida, outros leem os seus filmes como metáforas potentes sobre a opressão das diferenças sexuais e de género. Independentemente da interpretação, a sua concepção de corpos e identidades habitualmente inclui a sociedade apenas como uma força com a intenção de manter o status quo, não cúmplice na sua formulação. As personagens de Marques, por outro lado, veem a sua condição como o resultado de fatores que são biológicos bem como sociais. De modo a sobreviver, Adrian Tripod proclama a necessidade de “desenvolver uma nova sexualidade para uma nova espécie de homem”. Mirene, de Becoming Male, sugere um outro caminho: “Podemos, nós, criar a nossa própria artificialidade”.

Giovanni Marchini Camia
Giovanni Marchini Camia é um escritor, editor e programador de cinema que vive em Berlim. É cofundador da Fireflies Press, uma editora especializada em livros sobre cinema, incluindo Memoria by Apichatpong Weerasethakul, Pier Paolo Pasolini: Writing on Burning Paper, e a série de monografias Decadent Editions. A sua crítica cinematográfica foi publicada na Sight & Sound, Film Comment e Cinema Scope, entre outras. É também membro do comité de seleção de longas-metragens do Festival de Cinema de Locarno.

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