Top of the Lake (Temporada 1)
Joana Rafael
15 de Junho de 2024

Após uma sequência de abertura enigmática, na estreia televisiva de Jane Campion, com este thriller de seis episódios (com cerca de 50 minutos cada), um grupo de mulheres liderado por uma figura mística chamada JG (Holly Hunter) desenrola uma caravana de contentores marítimos para acomodar um retiro de bem-estar. “No final da estrada, no final da Terra, num lugar [adequadamente] chamado Paraíso”, revela a líder no término da série. Um prado dourado diante de um pequeno lago (Lago Moke) isolado entre os Alpes do Sul, a uma hora de distância do verdadeiro Paraíso, em Glenorchy, Nova Zelândia. Este é o cenário eleito para estabelecer uma comunidade baseada em princípios de reciprocidade, assistência e cuidado, que também serve de estrutura de apoio ao retrato dos traumas enfrentados pelas mulheres ao longo da série.

 

Aqui resgatam-se as conotações utópicas do isolamento em espaços remotos e confronta-se o sistema de parentesco entre os Homens — um sistema baseado numa economia orientada para a mercadoria (simbolizado talvez pelos contentores) e propriedade, características definidoras das sociedades patriarcais e do declínio histórico dos direitos das mulheres, inclusive sobre os seus próprios corpos. O lugar adquire significado à medida que a narrativa se desenrola lentamente, mas intensamente, ao longo dos seis episódios, concentrando momentos cómico-trágicos e cristalizando histórias de vida vertiginosas, bem como o majestoso ambiente natural e imagético que dá peso à série.

 

O “Paraíso” de Top of the Lake incorpora a pureza idílica associada à natureza intocada e ao espírito de solidariedade na ação política, nutrindo o idealismo que impulsiona a luta contra a dominação masculina e a intriga — uma teia de reviravoltas na trama. Este é o único local humano poupado da influência do clamor e da violência dos dois principais antagonistas da série: Matt Mitchan (Peter Mullan), o traficante local que corrompeu a economia e a psique de Laketop (Glenorchy), a cidade vizinha, dependente dele, e o detetive Al Parker (David Wenham), representante do paternalismo policial e da patriarquia.

 

No centro da narrativa está Robin Griffin, brilhantemente interpretada por Elisabeth Moss, a detetive que lidera a investigação sobre a violação e o desaparecimento de uma rapariga de 12 anos, Angel Mitcham (Jacqueline Joe), cuja busca implacável pela justiça expõe o abuso moral e sexual infligido por personagens masculinos. Ela serve como a lente através da qual percebemos os efeitos insidiosos da sombra de depravação e oportunismo lançada pela masculinidade que torna Laketop um purgatório. A partir de Robin mergulhamos nas complexidades do caso — que ganha profundidade através das memórias e experiências traumáticas da própria detetive.

 

Escrito em colaboração com Gerard Lee, com quem Campion já havia trabalhado em Passionless Moments (1983) e Sweetie (1989), Top of the Lake baseia-se em convenções reconhecíveis do drama policial, mas desenvolve uma estrutura narrativa dialética que flui entre um enredo envolvente e uma exploração profunda das dinâmicas sociais e psicológicas dos seus personagens. Revisita a figura do duplo, um motivo enraizado na história do cinema e característico da parceria entre Campion e Lee, com cuidado visual e atenção sustentada aos detalhes da trama, caracterização e texto em relação aos espaços e subjetividades. As correspondências entre personagens completos demonstram a habilidade dos autores em interligá-los por vários elementos narrativos, incluindo temas de identidade, dualidade e psique humana, revelando facetas obscuras e inesperadas.

Filmado com Adam Arkapaw, diretor de fotografia, e com Garth Davis na codireção, Top of the Lake equilibra longos planos de sequência do terreno montanhoso filmados em grandes-angulares com close-ups de espaços domésticos que aparecem como espaços negligenciados: normativos e excêntricos, mas sombrios, desordenados e desarrumados, contrastando com as cores mais quentes e amareladas do Paraíso e as cores vivas dos contentores marítimos que compõem as acomodações das mulheres.

 

Dramaticamente, mas também tecnicamente, a série reflete a abordagem cinematográfica de Campion e a sua relação com dinâmicas de género (como em The Power of the Dog e The Piano). Mantém a tradição feminista, em consonância com as ideias de Luce Irigay e Helene Cixous em relação à teologia cristã, construção falocêntrica das mulheres e economia masculina do amor sacrificial. Note-se os nomes dos homens da família Mitcham: Matt, Mark, Luke e Johnno.

 

Top of the Lake é uma obra contemplativa e comovente, complexa e reflexiva, executada com precisão e uma narrativa tocante e sensível ao trauma vivido por mulheres e crianças. Mistura elementos de drama, mistério e horror (abuso e violência recorrentes) com comentários sociais e uma exploração intensa de emoções, onde o desejo pode ser entendido como desejo por paraíso, uma união mais justa e livre das amarras da masculinidade. A série emprega uma composição cuidada de imagens impressionantes pontuada por uma melodia minimalista, produzindo um impacto emocional e estético agudo.

Joana Rafael

Joana Rafael é arquiteta e investigadora. Foca (questões de) ecologia, geografia humana e ciências naturais, abrangendo cultura contemporânea, estudos de média, arte e tecnologia, refletindo sobre os limites de infraestruturas em relação ao funcionamento do sistema terrestre. Concluiu p Doutoramento em Culturas Visuais, o Mestrado em Arquitetura de Pesquisa na Goldsmith (Londres) e o Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana Metropolis, do consórcio entre a Universidade Politécnica da Catalunha e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Faz consultoria para escritório de arquitetura e leciona na Escola Superior Artística do Porto.

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