Antes de assistires
Leva o tempo que for preciso, deixa os olhos habituarem-se.
Pensa em pessoas a dançar e luzes.
Luz
A dançar
E no intervalo entre corpos que estão entrelaçados.
Lembra-te que o intervalo entre os corpos é
o único espaço por onde passa a luz.
***
vê como numa noite longa os corpos estão envoltos em escuridão alguns iluminados eroticamente cheios de prazer audível uma outra escuridão cobre outros no silêncio de toque indesejado fluído ruturas de pele e uma ameaça inquietante de explosão fratura e dor.
***
Não consigo ver os rapazes turbulentos, às voltas como roupa suja numa máquina de lavar. No tambor que fazem com os seus corpos há uma arma e mesmo quando na realidade é amaciada pelo material dos seus corpos, enquanto observo ergue-se uma frequência, para fazer um som como um guincho de metal contra metal, tão alta e real é a sua ameaça. No entanto, depois o tambor que formam com os seus corpos parece tornar-se num outro recipiente; uma arma transmuta-se num talismã para dar origem a um novo eu.
***
Luís, Chico, e Gabi são geógrafos, creio.
Perguntam-se o que está onde? Porquê lá?
Estão a orientar-se e são-lhes oferecidos mapas; retidão, retribuição, violência; para viagens que os transportam para fora de si mesmos.
Olham para o terreno dos seus corpos, cartografam as formas como se movem nos espaços que libertaram
e perguntam
Porque é que isto está a acontecer aqui?
Observo-os e sussurro o que ouvi,
Um eco de mapas que me foram mostrados
(“não vale a pena olhar para um mapa do mundo que não inclua a utopia”)
***
Estes filmes estão em movimento, são sobre movimentos em movimento. Os corpos movem-se com naturalidade por um momento, e achamos que podemos estar a assistir a uma dança ou a um ato de amor e de repente esta naturalidade colide com uma superfície que para a fluência nos seus caminhos. O ritmo líquido de dois corpos em contacto torna-se num soco staccato, a insistência pulsante do toque indesejado ou o resíduo reverberante da tristeza que sobra quando a ternura é descartada pela retribuição.
Uma nova cadência chega com novas questões.
Para onde iremos viajar?
Como é que lá chegaremos?
Quem iremos magoar pelo caminho?
***
Em Cabra cega, os membros de Gabi mostram-lhe o caminho para o futuro que deseja. Os seus braços estendem-se para o céu em protesto, cotovelos para fora para proteger a sua família.
Num ritual de autodefesa, estende as mãos para se juntar a outros. Neste ritual, as mãos agarram com a força que sempre conheceram. São carne em colisão; salvador, vítima e agressor. Mas talvez num novo ritual sejam carne a deslizar, escorregando por cima e à volta das extremidades umas das outras à procura de novas formações, novas justiças.
Cada membro ativa o movimento, e representa a questão da sua ativação; a questão do(s) movimento(s);
segurar ou largar? lutar ou ceder?
Num mundo repleto de alcance, os gestos encontram-se em transmutação. Nós de dedos receosos que os mantêm seguros, transformam-se em punhos sangrentos e expostos. A união de braços numa luta partilhada transforma-se numa contorção, um abraço dançante torna-se numa garra de carne a apalpar. Talvez tentemos alcançar demasiado, talvez não nos submetamos aos constrangimentos dos nossos desejos. A viajar. Em direção a outra coisa. Viajar é andar para a frente enquanto também mantemos os apegos que nos asseguram o que sabemos até agora. Eles não conseguem lá chegar, se nós não conseguirmos lá chegar. Nesta não-presença coletiva, nesta espera coletiva, há um descarrilamento, uma mágoa desenfreada, uma viagem arrebatadora que pode apenas aproximar-se, e nunca chegar.
***
Depois de assistires,
Pensa nos fantasmas que assombram a Gabi.
Espetros em espiral cobrindo as distâncias entre
o que desejamos e o que conseguimos alcançar.
Pensa como a Gabi se move para resistir,
mesmo quando o objeto do seu resgate descansa profundamente.
Conforme ela gira em torno do que está envolto na escuridão desconhecida,
trazendo-o de volta à segurança,
faz o teu próprio regresso.
Volta para trás para te perguntares:
Como devemos defender as coisas que nos são mais queridas?
Descansando, num sono tranquilo, cedendo?
Ou de olhos abertos à força em combate direto?
Referências
Gilmore, Ruth W. 2022. Abolition Geography: Essays Towards Liberation. Editado por Brenna Bhandar e Alberto Toscano. N.p.: Verso Books.
Karpman, Stephen. 1968. “Fairy tales and script drama analysis.” Transactional Analysis Bulletin 7 (26): 39-43.
Muñoz, José E. 2019. Cruising Utopia, 10th Anniversary Edition: The Then and There of Queer Futurity. N.p.: NYU Press.
Jemma Desai
Doutoranda na Central School of Speech and Drama (Londres), presentemente a pensar através de ideias de liberdade em imagens em movimento e performance, Jemma Desai relaciona-se com programação de cinema através da pesquisa, da escrita, da performance e da pedagogia. Trabalhou por toda a indústria cinematográfica, em lugares como Berwick Film & Media Arts Festival, Blackstar Film Festival, BFI e British Council, e baseia a sua investigação nestas experiências, encontrando formas de refletir sobre como o imperialismo se replica através de processos de trabalho institucionalizados, afetando as várias maneiras como nos relacionamos através da arte.
©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits