Modernidade líquida (diria Z. Bauman)
Naquela festa de domingo na piscina onde circulava superficialidade e melancolia em plena ressaca da noite anterior, trocavam-se conversas banais e simulações. Aborrecido, Ned anunciou que voltaria para casa nadando de piscina em piscina, espécie de herói em fato de banho na sua odisseia por mansões e gente conhecida.
O início do filme transporta-nos para a Arcádia, a natureza exuberante da idade de ouro. Ouvem-se passos, os animais vigiam, pressentem prodígios ou ameaças, os patos levantam voo do rio e o encantamento desfaz-se.
Do vigor à decadência, Ned vai-se transformando durante um percurso por fragmentos dispersos e desfocados de uma realidade plena de coisas vazias, fantasmagorias, simulacros de felicidade ou momentos de um mundo à beira do colapso. Continuamente presente, é o corpo (mais do que as palavras) que dá sinais dessa metamorfose, desde o vigor, a luminosidade, a velocidade…, até a uma aterradora imobilidade entre trovões e pesadelos: correndo com(o) um cavalo, saltando, arrastando-se exausto, tropeçando, coxeando, sofrendo o frio, oferecendo-se a outros corpos que o negam, que o vencem, que o atacam ou expulsam.
Começa então o circuito das piscinas, ambiências sintéticas onde os humanos se reúnem e oferecem instantâneos de realidade/falsidade, superficialidade, decadência, álcool, encenações de uma sociedade e de personagens reais/ausentes que povoam o mundo onírico de Ned que, apesar dessa irrealidade, o nadador pensa recuperar, tentar aí novos começos que nunca resultam. O sentimento de solidão vai crescendo entre as piscinas e as suas cenografias sociais decadentes, e os espaçamentos que devolvem a Ned a sua individualidade perturbada e caótica. Em tantos episódios, como fragmentos dessa individualidade estilhaçada, sucedem-se contrastes e afloramentos de uma vida errática, plena de relatos e acontecimentos de que apenas restam episódios distorcidos e uma grande vontade de ser amado e ver o seu reflexo na água da piscina de Narciso.
Julie, a baby-sitter bela e inocente para quem Ned era um deus, ainda aceita acompanhá-lo ao longo de uma etapa que celebra, mais do que todas, a juventude, a alegria, a alucinação, o corpo em acção — entre realidade e imaginação, ele toca-a, diz-lhe que tomará conta dela, ela resiste, diz que tem um namorado ciumento e desaparece.
Na situação oposta, outra mulher, uma amante de ocasiões, ouve-se um chorrilho de acusações — mentira, hipocrisia, cinismo, fingimentos. Ned lamenta a inocência perdida, a mãe, a confiança num mundo seguro — vens uma semana comigo para um castelo na Irlanda?, insiste Ned, ao mesmo tempo que repete que tem de ir a nadar para casa, que a mulher e os filhos o esperam. Sacana, diz ela.
Numa das piscinas, completamente seca e degradada, há apenas um pequeno deus Pã deixado à sua sorte, tocando flauta e vendendo limonadas. Tudo o resto é ausência. Ned diz-lhe que não está só, que é o capitão da sua própria alma e nadam os dois numa água que não existe, mas que passaria a existir por força da imaginação. A cena é comovedora. Ned diz que voltará no dia seguinte e afasta-se, regressando subitamente por causa do som ameaçador da criança a saltar na prancha ensaiando, quem poderia saber, um mergulho para o real/imaginário. O menino triste fica para trás tocando a sua flauta.
Exausto, cruzando uma estrada onde o caos, a agressividade e a indiferença o atingem em pleno, Ned chega a uma piscina pública, um tanque de baixa profundidade onde chapina uma multidão anónima. Acabara o azul-turquesa das piscinas privadas e dos seus ecossistemas distintos. Cansado, coxo, desiludido, o nadador sujeita-se a sucessivas humilhações — sem dinheiro para a entrada, obrigado a seguir regras, a ser inspecionado para verificação da higiene dos pés. No meio da multidão, há gente que o censura, que lhe exige pagamentos de dívidas, que lamenta a má sorte da sua família. Desesperado e em completa negação, Ned atravessa a piscina já sem nadar, arrastando-se ofegante e foge escalando uma rocha como quem se despenha por um precipício.
A última caminhada é curta e esforçada. O Éden é agora vegetação seca, chão duro, trovoada que desaba em aguaceiros e golpes de vento. Ned ouve as crianças no campo de ténis, um delírio cuja visão muda com o som do bater da bola e do riso das filhas. Ao fundo, a sua casa há muito abandonada, os vidros partidos, a porta fechada.
O corpo vai-se então apagando, encolhendo-se na sombra da ombreira, procurando um abrigo, um ventre que lhe é negado. Não há mais razão para nadar porque Ned chegou ao seu vazio interior, ao desmoronar do sonho americano.
Álvaro Domingues
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.
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