O primeiro filme do realizador italiano Luca Guadagnino, The Protagonists, é ilustrativo de uma vontade de explorar diferentes formas de contar uma história, sintomático de um autor à procura da sua visão artística. Atravessando diferentes registos, o filme é, por vezes, um documentário sobre um caso real de homicídio, com depoimentos e a recriação de vários momentos. Porém, é, em parte, também um documentário sobre o próprio processo de filmagem, sobre as suas escolhas e ensaios, até chegar a uma ficção imaginada que tenta retratar o que terá acontecido na noite do crime. Um filme em mutação permanente que, à medida que avança por entre as diferentes peças do mistério, vai diluindo a fronteira entre o que é real e o que é encenado — o que ajuda a sublinhar não só o aspecto melodramático desta história, mas também o seu carácter aleatório.
Um crime real, um homicídio que acontece nas ruas de Londres apenas quatro anos antes deste filme, é a inspiração para The Protagonists, que acompanha uma equipa durante a filmagem, em Londres, de um documentário sobre o caso. Dois jovens ingleses fantasiam cometer o crime perfeito e, no final de uma noite à procura da sua vítima, escolhem aleatoriamente um estranho, que deixam morto antes de encetar uma fuga. Como conta Tilda Swinton, cuja personagem funciona como um narrador que nos guia pelas descobertas sobre o crime, mas também sobre o próprio filme, serão apanhados alguns meses mais tarde pela polícia, depois de um deles confessar o crime.
A relação entre o crime e o modo de contar a história, entre realidade e representação, é uma batalha constante ao longo do filme. Os diferentes ensaios da noite fatídica e do assassinato no carro são encenados de diversas formas, surgindo sem grande aviso, com um efeito perturbador — nunca sabemos quando seremos “assaltados” por uma intempestiva recriação sangrenta do crime. A curiosidade sobre os detalhes, a forma como a vítima foi atacada ou os tipos de ferimentos, prenunciam o surgimento de um maior interesse da sociedade em relação a crimes violentos, anunciando uma vaga de documentários e séries de televisão nos anos posteriores, cujo interesse mórbido The Protagonists parece criticar, mas que não resiste a mimetizar.
Uma frase no início ajuda a contextualizar o interesse no tema: “Durante a guerra entre o bem e o mal, o espectador é quase sempre atraído pelo triunfo do mal.” É um comentário acusatório sobre uma sociedade atraída por estes episódios de violência, um fascínio do qual somos todos culpados, como traças atraídas pela luz. Guadagnino arrisca aqui esticar os limites entre entretenimento, fidelidade aos acontecimentos e respeito à memória das vítimas, usando um caso verídico para desconstruir as possibilidades na representação da realidade. A forma como o homicídio é recriado de formas repetidas contrasta com o modo como os actores ensaiam e discutem os pormenores do caso num ambiente descontraído, desligado da violência do caso, como se essa distância emocional fosse necessária para lidar com a ideia de que qualquer um de nós poderia estar no lugar da vítima.
Se a maior parte dos documentários procura atingir uma ideia de realismo, uma ilusão que nos leve a acreditar na veracidade do que estamos a ver, aqui quase todas as escolhas (um julgamento recriado num jardim, um mapa da cena de crime feito com brinquedos, a quebra recorrente da quarta parede com actores a interpelarem a câmara, os bloopers nos créditos finais) funcionam para sublinhar a artificialidade de The Protagonists. Numa das sequências mais desconcertantes, a personagem de Tilda Swinton entrevista a viúva da vítima, interrogando-a sobre as preferências desta em relação a aspectos triviais, como se isso fosse necessário para humanizá-la.
No entanto, é no terço final do filme que as possibilidades da representação da realidade são levadas ao limite, numa ficção que assume contornos de fantasia delirante. Como refere a personagem de Swinton, que, a certo ponto maquilhada como a vítima, se deita na rua como morta: mais pessoas pararam na rua para ver as filmagens, do que as que pararam para reparar na vítima morta no seu carro. O espectáculo e as suas luzes ainda prendem a atenção, mais do que a própria realidade.
João Araújo
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.
©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits