The Portrait of a Lady
André Tecedeiro
11 de Maio de 2024

Em 1884, um ator desafiou Henry James a adaptar o seu romance The Portrait of a Lady para teatro. James respondeu que isso não seria possível já que a melhor cena do livro consistia em Isabel imóvel, sentada numa cadeira.

Este episódio ilustra bem a complexidade de adaptar ao cinema uma obra que vive dos conflitos interiores das personagens. Mas quem, melhor que Campion, essa retratista de mulheres, para mostrar as paisagens revoltas que as habitam? Para encontrar no mundo tangível os reflexos das lutas internas?

O filme tem um prólogo. Podemos vê-lo apenas como uma base para os créditos, mas geralmente as coisas que antecedem as coisas têm razões para existir.

Mulheres anónimas do séc. XX interagem em grupo, em roda, posam sozinhas para retratos, são determinadas, são vulneráveis. Há vozes, que parecem ser as suas. Falam-nos da melhor parte de um beijo, do enlaçamento dos corpos, do mistério. Uma das vozes diz “eu acredito no destino, então aquela pessoa vai encontrar-me, ou vamo-nos encontrar de alguma forma”. Aqui recebemos um convite para acreditar na inevitabilidade do amor idílico. Uma fantasia tão possível em 1996, como no século XIX ou XXI.

E depois um outro retrato, a cores. O rosto luminoso de Isabel Archer (Nicole Kidman), belíssima, vital, curiosa e inteligente. Sabemos que cola nas paredes papelinhos que a ajudam a cultivar um vocabulário mais vasto, sabemos que gosta de cheirar as botas quando as descalça. Isabel não é ainda uma senhora, tem desejos de independência. Quer ser dona do seu destino, quer viver viagens e aventuras e não está disposta a sacrificar nada disto pelo casamento. Sem hesitação, recusa dois bons pretendentes, que permanecem presentes nas suas fantasias eróticas.

Isabel admira uma mulher mais velha e também americana, Serena, que é para ela um modelo de independência. Serena aproveita-se disso e manipula-a para a entregar nos braços de Gilbert Osmond (John Malkovich), um homem gélido, mas sedutor, apenas interessado na fortuna que Isabel herdou.

Numa época em que as mulheres tinham pouquíssimas escolhas, Isabel era rica e independente e podia fazer o que quisesse. Mas, ainda assim, deixou-se prender numa relação cruel, um destino ainda pior do que aquele de que fugia.

A Isabel indomável que estava disposta a desafiar as normas sociais vai-se transformar numa esposa apagada. O seu cabelo deixa de arder em tons de fogo e nem os caracóis se tentam soltar do penteado. Toda ela está presa, é apenas mais um objeto da coleção de Osmond.

Este não é apenas o retrato de uma senhora, mas o retrato do humilhante processo de domesticação que transforma uma mulher numa senhora. Uma mulher empurra outra para um destino traiçoeiro. Uma mulher permanece presa para não abandonar outra vítima.

Se, depois do filme, voltarmos a lembrar o prólogo, e as palavras inocentes daquelas mulheres do séc. XX, podemos pensar quanto nelas há de Isabel Archer. Que destino tiveram? Quanta inocência perderam? Manterão esta imagem desororidade ou juntam forças à pressão social que empurram mulheres para destinos infelizes?

Regresso a uma das suas vozes: “Isso significa encontrar um espelho, o mais claro espelho, o espelho mais fiel, então quando eu amo aquela pessoa, eu sei que ela vai devolver esse brilho”.

Quantos de nós se terão perdido na ilusão de se verem inteiros na imagem devolvida pela pessoa amada?

Por onde desaparecemos quando a imagem no espelho nos apaga e nos humilha?

André Tecedeiro é poeta, dramaturgo e artista plástico. É licenciado em Pintura (FBAUL) e em Psicologia (FPUL) e mestre em Artes Plásticas e em Psicologia do Trabalho. Publicou oito livros de poesia em Portugal, Brasil, Colômbia e Espanha, entre os quais A Axila de Egon Schiele (Porto Editora, 2020), recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. Os seus poemas estão representados em mais de vinte revistas literárias e antologias. Para teatro, escreveu Joyeux Anniversaire (2021), Desfazer (2021) e O Ensaio (2023).

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