The Man Who Left His Will on Film
João Araújo
30 de Outubro de 2024

Nagisa Ōshima — que afirmou que não estava interessado em fazer filmes que pudessem ser compreendidos em 15 minutos —, como um dos membros fundamentais do movimento Nuberu Bagu, a Nova Vaga Japonesa (em particular pelo seu filme de 1960, Cruel Story of Youth), iria atravessar uma década de turbulência política e social. Esse período iria culminar com a crise dos protestos dos estudantes universitários japoneses, entre 1968 e 1969, inspirados também no movimento francês de Maio de 1968. Com o fim do movimento e o dissipar desse espírito rebelde e da ideia de conseguir mudar o mundo, chega a década de 1970 e o sonho revolucionário parece também desaparecer, desfeito pela repressão policial e falta de apoio da sociedade, mas também em parte pela fragmentação entre os movimentos estudantis. The Man Who Left His Will on Film é precisamente um retrato desse momento de fim de ciclo, mas, ao estilo de Ōshima, é um retrato também ele fragmentado, frenético e febril, uma reflexão também sobre o papel do cinema e as suas imagens, sobre o que pode ser o cinema político, usando um mistério metafísico para questionar o legado de contestação e idealismo dessa década. 

O início do filme é bem indicativo da pequena tempestade que um evento vai desencadear num grupo de estudantes envolvido na luta política. Um ponto de vista subjectivo mostra-nos as filmagens de uma câmara numa fuga incerta, em que alguém desconhecido corre, entre movimentos pouco perceptíveis, no sentido oposto ao de uma outra figura, que mais tarde descobriremos como Motoki, um estudante. De seguida, um ponto de vista objectivo (já fora do olhar da câmara, como um observador neutro), mostra-nos Motoki a olhar para o telhado de um edifício, onde a pessoa que fugia na primeira cena, Endo, se atira, suicidando-se ainda agarrado à câmara de filmar. Para Motoki, que assistiu a tudo isto, torna-se fulcral apoderar-se da câmara e do que terá sido filmado antes, como se a chave do que aconteceu estivesse contido nesses últimos fotogramas registados. Mas para sua confusão, quando acorda na sede do cineclube estudantil, ninguém parece estar ciente do que aconteceu, da morte do amigo. Mais do que isso, a namorada de Endo, Yasuko, recusa mesmo a versão de Motoki, afirmando que nada de grave aconteceu a Endo. Ao seu lado, um grupo de estudantes discute, eternamente, qual a melhor forma de acção para recuperar as imagens e a câmara da polícia, pensando num protesto pela sua liberdade de expressão.

A partir deste início de confusão, entre o que é real ou imaginado, sobre que versão dos acontecimentos corresponde à realidade, Motoki vai desenvolver uma obsessão, primeiro pelas últimas imagens gravadas por Endo, e depois por Yasuko, como se, na falta de respostas, procurasse ocupar o lugar de Endo para assim tentar compreender o que aconteceu. Como consequência desse sintoma, Motoki parece contagiado pelos males da sociedade, esquecendo-se de qualquer luta pelo colectivo ou de procura da justiça face ao que aconteceu, focando-se na sua necessidade individual de fazer sentido do que julga ter sucedido. Motoki vai aos poucos assumindo assim comportamentos intempestivos, egoístas, misóginos e violentos, transformando a sua frustração pela confusão interna em actos externos de agressão e vacuidade. O seu comportamento errático revela-se como uma metáfora, como se a sua confusão interna, a incerteza sobre a realidade dos acontecimentos, o afastamento em relação aos outros à sua volta, fosse um comentário sobre a fragmentação e desilusão do próprio movimento estudantil, uma vez perdido o sentimento idealista e romântico.

Não é só Motoki que revela um alheamento em relação ao que acontece à sua volta, mas também Yasuko parece estranhamente vinculada a este estado, como se ambos fossem diferentes versões da mesma pessoa. Os dois tentam desvendar este mistério existencial decifrando e revivendo as últimas imagens capturadas antes do momento fatídico, evocando uma ligação a Blow-Up, o filme de 1966 de Michelangelo Antonioni. Nesse filme, e aqui, a obsessão sobre imagens capturadas, sobre a procura de significados que podem estar nelas contidas, como se a materialidade de um registo da realidade fosse capaz de oferecer alguma espécie de verdade, acaba por revelar-se perigosa e deceptiva, como mais um passo em direção ao precipício.

João Araújo  
Licenciado em Economia pela Faculdade de Economia do Porto, João Araújo escreve sobre cinema no À Pala de Walsh (do qual é coeditor desde 2017). Colabora, desde 2016, com o Festival Curtas de Vila do Conde, no comité de seleção, na moderação de conversas com realizadores e na coordenação editorial. É diretor e programador do Cineclube Octopus desde 2003. Em 2010, apresentou em vários pontos do país um filme-concerto a partir da filmografia de Yasujiro Ozu. Em 2015 colaborou com o Porto/Post/Doc na programação de um ciclo dedicado a Lionel Rogosin.

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