Maravilhas da engenharia humana e indícios paradoxais de catástrofes presentes, passadas e por vir, as barragens têm uma longa história no cinema. De uma vista Lumière rodada em 1897 no delta do Nilo ao evocativo Still Life (2006), de Jia Zhang-ke, passando por Hulha branca (1932), de Manoel de Oliveira, os exemplos são múltiplos. Também a primeira longa-metragem do artista e cineasta libanês Ali Cherri tem como ponto de partida uma destas construções monumentais: a polémica barragem de Merowe, no Sudão. Desejada pelo ditador Omar al-Bashir e inteiramente financiada e construída por empresas e capitais chineses, trata-se de um projeto com pesadas consequências ambientais e humanas. No entanto, as imagens cuidadosamente compostas por Cherri preferem relegar para as suas margens esta estrutura colossal. A central hidroelétrica paira sobre o filme como uma assombração, carregando-o de energia e de tensões a partir do fora de campo onde quase sempre se situa. Como uma fábula, The Dam (Le barrage) concentra-se sobre uma figura enigmática. Algures nas imediações de um grande rio, à sombra de uma gigantesca barragem, labuta um homem cuja vida é feita de lama. Esse homem é Maher: personagem mítico e quase mútico, interpretado por um ator não profissional e verdadeiro operário, o extraordinário Maher El Khair. Sublimado pelos enquadramentos de Cherri, o seu rosto de uma sobriedade luminosa preenche alguns dos planos mais poderosos do filme.
Maher e os seus companheiros de infortúnio produzem tijolos de lama nas margens do lago artificial criado pela barragem, perpetuando gestos ancestrais e afrontando a prepotência igualmente milenar de um patrão abusador. Noticiada na rádio e retransmitida na televisão e nos smartphones, a revolução que decorre em Cartum constitui o violento, mas longínquo, pano de fundo dos seus dias. Graffiti inscritos nas paredes apelam à desobediência civil e ao fim do regime militar, mas Maher parece alheio a esse presente tão longe, tão perto. Sempre que pode, pede emprestada a moto de um amigo e atravessa as terras semiáridas e rochosas que foram um dia as dos faraós negros da Núbia para se dedicar a uma outra tarefa: a de erigir um estranho totem feito de lama. Tal como noutras histórias mitológicas, entre as quais a epopeia de Gilgamesh (muito presente no trabalho de Ali Cherri), a sua criação acaba por ganhar vida. A criatura interpela Maher em sonhos, desenvolve guelras, respira pesadamente. Uma extraordinária sequência noturna, entre o sonho e a alucinação, transporta-nos até uma floresta ruidosa e viva, digna de um filme de Apichatpong Weerasethakul. É, no entanto, com Tsai Ming-Liang que o realizador prefere pensar a sua atenção aos lugares e às matérias, incluindo a matéria-tempo do cinema.
Terceiro capítulo de uma trilogia composta por outras duas curtas-metragens — The Disquiet (2013) e The Digger (2015) — e imaginada em torno de três elementos — a terra, a água e o fogo —, The Dam (Le barrage) combina habilidosamente diferentes temporalidades e registos. Ainda que inscrita no presente — evocado pela barragem e pelo tecido social que a circunda, bem como pela revolução ao longe —, a história que nos conta Cherri parece chegar-nos da noite dos tempos. Oscilando entre o passado eterno e o presente, a fábula nasce da observação simultaneamente delicada e rigorosa dos lugares onde se situa. Mais do que um exímio contador de histórias, Cherri assemelha-se a um topógrafo ou a um arqueológo. Motivado pelo desejo de descobrir as camadas de história que se escondem sob a superfície do presente (a fábrica de tijolos), o realizador cartografa e investiga minuciosamente através da câmara os territórios que o intrigam e fascinam. Fábula sobre os tempos passados e presentes, The Dam (Le barrage) retém algo da beleza dos relatos arqueológicos.
Ainda que o filme de Cherri se aventure discretamente nos territórios do realismo fantástico, The Dam (Le barrage) permanece sempre atento à realidade das coisas, ao teatro das matérias e dos corpos. Visitado pelo fogo, trata-se de um filme essencialmente habitado pela terra e pela água, elementos cuja combinação está na origem da lama argilosa de que são feitos os tijolos, mas também a criatura. Mistura da emergência da vida, inspirando inúmeras histórias mitológicas, a lama é aqui a matéria mobilizada pelo gesto de criação e de resistência de Maher: a matéria da fabricação dos possíveis. De resto, algo reúne o corpo de lama da criatura e o corpo humano de Maher. Para além da misteriosa ferida que se espalha nas suas costas como um terreno de lama seca fissurada, ambos os corpos sucumbem à força simultaneamente destrutiva e regeneradora dos elementos aquáticos. Entre estes há que contar as lágrimas: aquela que num plano central do filme escorre furtiva sobre a face hierática de Maher, mas também essas outras que a uma escala cósmica — a das águas revoltas do rio e do céu — acabam por levar consigo a criatura. Esta desaparece literalmente lavada em lágrimas diante do olhar maravilhado de Maher.
Teresa Castro
Historiadora e teórica do cinema e das imagens, Teresa Castro é professora no departamento de estudos cinematográficos da Université Sorbonne Nouvelle — Paris 3. O seu trabalho concentra-se nas culturas visuais da modernidade e nas relações entre cinema e arte contemporânea. Foi investigadora no Musée du quai Branly (Paris) e no Max Planck Institute for the History of Science (Berlim). Em 2013, trabalhou como curadora associada da exposição Vues d’en haut, no Centre Pompidou Metz. Parte das suas pesquisas atuais concentram-se nas áreas do cinema, do animismo e do ecocriticismo.
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