Um dálmata sacia-se num festim de carne crua, rodeado por cães vadios, com uma aura reminiscente da iluminação chiaroscuro dos Mestres do Renascimento. A câmara desliza ao longo de um tubo com 48 milímetros de diâmetro, revelando uma floresta surreal de andaimes. À medida que a câmara sobe, uma cena emerge: dois criados, vestidos com trajes vermelho vivo, abrem elegantemente um par de cortinas para um espaço quase etéreo, noturno e urbano. Este é um espaço impregnado com tons metálicos azul-ultramarino e neblina, ressoando com latidos, onde Albert Spica (Michael Gambon), o Ladrão do titulo, e a sua esposa Georgina (Helen Mirren) fazem a sua entrada. Assim começa, de forma memorável, a obra de Peter Greenaway.
Celebrado pela sua opulência, narrativa audaciosa e interpretações cativantes, The Cook, the Thief, His Wife & Her Lover mergulha num tecido rico em dinâmicas de poder, excesso e obsessão. Abraça também o domínio do refinamento sensual e do atrativo provocador com bom gosto, explorando um intricado jogo entre o desejo e a morte. Corajosamente, examina o comportamento humano, funcionando como comentário político e expressão de intensidade emocional, enquanto exala um indiscutível sentido de elegância.
Impulsionado por uma fusão tangível entre exasperação e fervor, o filme desfila uma crítica incisiva aos desafios sociais da sua época, com enfoque especial para o impacto corrosivo do materialismo e da avareza do Thatcherismo. Nesse contexto de decadência, a obra encontra inspiração nas raízes do teatro, sobretudo na intrincada tessitura da peça satírica jacobina de John Ford, Tis Pity She’s a Whore, ecoando os banquetes do teatro do início do período moderno, palcos de tragédia e caos.
O dálmata, meticulosamente refinado em Inglaterra, emerge como um símbolo de estatuto cobiçado — um emblema de gosto requintado, pecado e gula, incorporando a opulência da sala principal de jantar do Le Hollandais, ou talvez apenas das facetas puras e pecaminosas do desejo de Georgina. A ressonância desta raça abrange séculos de pintura, registos eclesiásticos e a indústria da publicidade de moda.
A floresta de tubos de andaimes destaca a artificialidade deliberada e exagerada do filme. Erguida nos estúdios Elstree, em Hertfordshire, Inglaterra, com a ferramenta das obras cénicas de propaganda da ditadura fascista italiana, e da indústria cinematográfica, esta acrescenta profundidade irónica e semelhante ao teatro. Além disso, presta uma homenagem visual a 8½ de Fellini, espelhando a grandiosidade societal.
O cenário do espaço quase etéreo, noturno e urbano serve como purgatório, um reino de penitência. Estrategicamente posicionado na retaguarda e entrada do restaurante Le Hollandais, é onde Georgina e o Amante (Alan Howard) enfrentarão julgamento, e a carne que se decompõe dentro dos camiões libertará um odor fétido. A essência etérea deste espaço evoca sensação de libertação da opulência extravagante e do excesso cinematográfico que satura as cenas de abertura e todo o filme.
A atenção recai sobre o guarda-roupa. Composto por peças distintas que mudam de cor e lembram os elementos simbólicos presentes nos retratos holandeses e flamengos do século XVII, bem como a fascinante história das conexões do teatro inglês com o mundo da moda, o guarda-roupa amplifica o mundo imaginativo da burguesia abastada. Criado pelo estilista Jean-Paul Gaultier, realça os temas do filme e a sua exuberância visual, ao mesmo tempo que contribui para a atmosfera surreal e onírica.
O restaurante serve como ponto fulcral em torno do qual a narrativa gira, e como palco onde os apetites e desejos humanos, seja por comida ou paixão, são ambos satisfeitos e, em última instância, revelados. Guiado pelo olhar atento do compassivo cozinheiro (Richard Bohringer) e da sua dedicada equipa, o restaurante encarna o expoente máximo do gosto requintado e transforma-se numa tela onde Greenaway pinta autoridade, decadência e a deterioração da sociedade. Ao longo de nove dias, como mostra o menu nos intertítulos, transforma-se no cenário onde a violência escala.
A narrativa desenrola-se pelas zonas do restaurante, capturando o fluxo de ação. Movimenta-se entre uma cozinha medieval bizarra e colossal, repleta de caldeirões e tachos reluzentes, despensas entulhadas de faisões por depenar, e uma sala de jantar fin-de-siècle vestida de encarnado, e com uma reprodução da obra barroca flamenga O Banquete dos Oficiais da Companhia Militar de São Jorge (1616). Esta última reflete a dinâmica do grupo. Simultaneamente, uma casa de banho moderna acolhe o encontro inicial dos amantes.
O título expõe as personagens, dinâmicas e situações alegóricas que impulsionam a história, ecoando uma certa simplicidade e os temas arquetípicos frequentemente encontrados em peças morais e fábulas.
Um aspeto notável reside na justaposição de utensílios de cozinha, culinária refinada, conversas decadentes, murmúrios, profanidades, nudez e paixão em proximidade íntima, pontuados por uma paisagem sonoro evocativa, caracterizada pela música hipnótica e Barroca de Michael Nyman e a voz estridente de um tenor. Esta fusão de elementos auditivos com os cenários e o vestuário da mise-en-scène transforma o filme num festim cinematográfico, uma experiência rica e indulgente repleta de cobre reluzente, arranjos de naturezas-mortas que ganham vida e uma atmosfera que oscila entre a beleza e o grotesco.
Joana Rafael
Joana Rafael é arquiteta e investigadora. Foca (questões de) ecologia, geografia humana e ciências naturais, abrangendo cultura contemporânea, estudos de média, arte e tecnologia, refletindo sobre os limites de infraestruturas em relação ao funcionamento do sistema terrestre. Concluiu o Doutoramento em Culturas Visuais, o Mestrado em Arquitetura de Pesquisa na Goldsmith (Londres) e o Mestrado em Arquitectura e Cultura Urbana Metropolis, do consórcio entre a Universidade Politécnica da Catalunha e o Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Faz consultoria para escritório de arquitetura e leciona na Escola Superior Artística do Porto.
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