The Catch (1961), o primeiro filme independente de Ōshima, realizador japonês nascido em Quioto, definiu o tom para o que viriam a ser os temas que ele exploraria futuramente: o racismo e a brutalidade, institucionalizadas ou pessoais. Filmado em longos planos e com o mínimo de movimentos de câmara, o filme, uma adaptação do conto homónimo de Kenzaburo Oe, narra a história brutal de um prisioneiro de guerra afro-americano, mantido como refém numa pequena aldeia.
Durante o verão de 1945, um avião americano cai numa área rural do Japão. Os aldeões capturam o piloto sobrevivente (Hugh Hurd) e trancam-no num estábulo, aguardando instruções oficiais sobre como proceder. Enquanto esperam, conflitos latentes na comunidade vêm à tona. O escritor Kenzaburo Oe foi um crítico importante das tradições autoritárias japonesas e do nacionalismo, e a sua obra reflete um esforço contínuo para lidar com as memórias da Segunda Guerra Mundial, a bomba atómica e os traumas sociais decorrentes do militarismo japonês. No filme, enquanto aguardam a chegada da polícia militar para remover a sua “captura”, os aldeões fazem do prisioneiro um bode expiatório para todos os seus problemas. Takano, o senhor de terras local, autoritário e abusivo, aproveita a raiva e as frustrações dos aldeões, que culpam o prisioneiro, para desviar a atenção dos seus próprios atos. O realizador Nagisa Ōshima, conhecido pelos seus filmes provocatórios, explora aqui o colapso moral deste grupo de aldeões que capturam e guardam o piloto americano. A tensão cresce lentamente, revelando os instintos mais sombrios das pessoas quando são levadas a certos tipos de limite.
The Catch não é, no entanto, apenas um filme sobre a Segunda Guerra Mundial, mas um estudo da natureza humana em situações extremas, onde a moralidade é testada até aos seus limites. A trama examina as interações entre este prisioneiro de guerra e os habitantes locais, expondo preconceitos e tensões resultantes deste encontro. O prisioneiro americano, além de ser um “inimigo”, é visto como uma ameaça por ser um homem negro numa sociedade homogénea e xenófoba. Ōshima não suaviza essa questão: o preconceito é revelado como fruto do medo e da ignorância, gerando um ciclo de opressão que é intensificado pela situação de guerra. A brutalidade não se manifesta apenas nos atos físicos, mas numa cinematografia que revela a deterioração moral coletiva. Inicialmente, os aldeões veem o prisioneiro como uma ameaça, mas aos poucos veem-se eles próprios envolvidos numa espiral de violência que revela as fraquezas e contradições da própria comunidade.
Ōshima evita simplificações ao construir estes personagens, permitindo-nos experimentar uma moralidade ambígua. O prisioneiro, apesar de sofrer discriminação e violência, carrega consigo as suas próprias complexidades e traumas. Os aldeões, por sua vez, dividem-se entre o desejo de manter a sua segurança e a tentação de explorar o “outro” como símbolo de tudo aquilo que é desconhecido e, portanto, assustador. O ambiente claustrofóbico da aldeia, e dos próprios cenários domésticos, intensifica essa tensão, criando uma espécie de microcosmo onde a guerra externa é replicada em escala íntima. Aqui, a desumanização acontece tanto para o prisioneiro quanto para os habitantes da aldeia e da casa, dado que todos são consumidos pelo conflito.
O estilo visual de Ōshima em The Catch reflete a atmosfera sombria e crua da história, numa cinematografia a preto-e-branco, que acentua o contraste entre o prisioneiro e os habitantes, e adota um ritmo introspetivo e silencioso, aumentando a opressão e o suspense da narrativa. Ōshima cria uma experiência de imersão quase angustiante, em que o silêncio enfatiza a tensão latente. Esse minimalismo torna a narrativa ainda mais entranhada, aproximando o espectador da crueza das interações e da complexidade dos personagens. O filme toca, assim, na ideia de alegoria esperada numa obra sobre o fascismo persistente na sociedade japonesa e desafia-nos a confrontar as nossas próprias noções de moralidade e humanidade. Ao mesmo tempo, expõe o impacto destrutivo do racismo e da violência, num retrato impiedoso de uma sociedade dividida entre a necessidade de sobreviver e o impulso de subjugar o outro.
Por fim, em The Catch, as crianças desempenham um papel importante na dinâmica da história e na construção da crítica de Ōshima, sendo apresentadas como figuras ambivalentes, inocentes e cruéis ao mesmo tempo, espelhando a complexidade da sociedade adulta à sua volta. Por um lado, assistem ao sofrimento do prisioneiro e participam da sua vigilância, muitas vezes repetindo os comportamentos hostis dos adultos. Por outro lado, demonstram uma curiosidade verdadeira que contrasta com o medo e a desconfiança dos mais velhos, sugerindo uma potência de diálogo e empatia que é rapidamente suprimida pelo ambiente em que vivem. Ōshima oferece, assim, uma crítica cáustica à capacidade de desumanizar o outro e de justificar a barbárie através de ideologias de poder e medo.
Catarina Alves Costa
Catarina Alves Costa é realizadora e antropóloga, doutorada pela na Universidade Nova de Lisboa com a tese “Camponeses do Cinema. Representações da Cultura Popular no Cinema Português”. Realizou, entre outros filmes, Margot (2022), Pedra e Cal (2016), Falamos de António Campos (2010), Nacional 206 (2009), O Arquiteto e a Cidade Velha (2004) e corealizou Um Ramadão em Lisboa (2019). É Professora Auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e Coordenadora do Mestrado em Antropologia — Culturas Visuais e do LAV — Laboratório Audiovisual do Centro em Rede em Antropologia (CRIA). É autora do livro Cinema e Povo (2022, Edições 70).
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