The Big Flame
Kitty Furtado
21 de Junho de 2024

Mudar a Sociedade Primeiro


The Big Flame conta a história de uma greve célebre levada a cabo por um grupo de trabalhadores das docas de Liverpool, em 1967. Curiosamente, na altura, o governo do Reino Unido era trabalhista; a eleição de Harold Wilson, em 1964, aconteceu depois de uma violenta campanha política para a qual os estrategas do Labour Party se inspiraram na campanha americana de John F. Kennedy (1960), parcialmente baseada na vida de atores e escritores da New Wave. O primeiro-ministro que fora, portanto, eleito graças a uma imagem de bom rebelde com gostos populares, contava com o apoio dos sindicatos tradicionais, sobretudo depois das conclusões do “Devlin Report”. Este relatório foi encomendado pelo governo e versava as condições de trabalho nas docas, recomendando uma ofensiva contra as organizações não oficiais de trabalhadores, como método para impedir greves.


A forma como Ken Loach apresenta aquilo a que chamou de “autenticidade do retrato da vida das classes trabalhadoras inglesas” é cuidadosamente construído sobre uma relação profissional de cumplicidade política e artística com Jim Allen, o argumentista de The Big Flame, sobre princípios marxistas, sobre um elenco conhecedor da realidade representada no filme (prática herdada do cinema soviético e do Neorrealismo Italiano) e, claro, sobre toda uma forma de filmar e montar, aqui com frequente recurso aos planos de rosto e de peito e a uma alternância da narrativa que permite uma leitura clara de acontecimentos simultâneos no tempo, mas em lugares (grupos sociais) distintos.


Na verdade, o estilo de Ken Loach frequentemente descrito como “simples”, “direto” e “realista” é muito construído; um naturalismo experimental e investigativo, que nasce de uma elaboração entre factos históricos e imaginação artística, entre o papel do escritor do argumento filmado e a contribuição dos atores que adicionam às réplicas os seus testemunhos baseados na experiência.


O filme tem início com os acontecimentos que conduzem à greve. As tentativas de negociação falhadas entre trabalhadores, líderes sindicais e representantes do governo são coreografadas na forma que Raymond Williams designaria “modo indicativo”, até que, num segundo momento do filme, um dos trabalhadores introduz o “modo subjuntivo” ao instilar a “grande chama” a que se refere o título: e se em vez de continuarem a fazer greve por motivos meramente económicos (aumentos salariais) que rapidamente são absorvidos pela inflação, fazendo tudo voltar à estaca zero, os trabalhadores ocupassem as docas, apropriando-se e controlando os meios de produção?


Ainda seguindo Raymond Williams, essa “hipótese imaginativa” não é representada de “modo utópico”, mas sim de “modo naturalista”, fundindo técnicas usuais de criar reconhecimento no cinema com experiências criativas, para elaborar uma hipótese alternativa no interior desse reconhecimento. Assim, vamos acompanhando a história de 10.000 homens que durante cinco dias ocuparam o porto de Liverpool e, sem amos nem amarras, conseguiram produzir mais e melhor.


Chamo a atenção para três dispositivos usados por Ken Loach que adensam a história contada ao mesmo tempo que ampliam o seu universo. O primeiro é a utilização, num momento específico, de voice-over para comentar (ampliando) a ação, em tom épico; o segundo é a introdução de um intermezzo musical protagonizado por um marinheiro americano que canta uma canção sobre um líder do sindicato Industrial Workers of the World, que internacionaliza a ação e sublinha o papel da arte militante na luta política (autorreferencial); por fim, já na última parte do filme, uma sequência recorre às técnicas de agitprop do teatro tribunal — a personagem do juíz elogia o marxismo como ferramenta intelectual na universidade e condena o seu uso político por trabalhadores, dando origem a uma resposta altamente politizada, por parte do réu. Além de tudo isto, é transversal a todo o filme uma crítica contumaz ao papel dos média, lidos como braços do poder, a par da polícia e do exército. Aliados do poder são também traidores de classe.


Numa entrevista dada em 2007, Ken Loach confessava que o cinema talvez nunca tenha feito grande coisa pelos trabalhadores e que se quiséssemos realmente mudar algo teria de ser na política ou no movimento sindical. Ao ver The Big Flame, em 2024, não consigo deixar de sentir — talvez com algum excesso dramático, admito — que se perdeu uma guerra. Perdeu-se sem glória, apesar do furor empregue nas batalhas travadas. Dos vencidos não reza a história. Os trabalhadores foram quase todos substituídos por colaboradores e os sindicatos que detêm algum poder são os dos grupos profissionais da chamada classe média. O filme traz ao presente o momento em que luta de classes na Europa entrava, sem saber, no seu estertor — apesar da luta ter continuado, como indica a cena final. A classe dominante venceu essa guerra e hoje a luta é pela sobrevivência da Terra. Nunca saberemos se o planeta estaria melhor, caso a guerra entre o povo trabalhador e o patronato tivesse tido outro desfecho. Porém, toda uma “nova onda” de perigo “ameaça o sistema” e justifica a manutenção de instituições repressivas, como a polícia e o exército — uso aqui as aspas no seu sentido original de ironia. Os “novos” “perigos” são, entre outras, as pessoas exiladas, as pessoas imigrantes, filhas de imigrantes, percebidas como estrangeiras, pertencentes a minorias étnicas, pertencentes a minorias religiosas, indocumentadas, adoecidas, dissidentes de género, enfim, todas as pessoas que, por algum motivo, não são abraçadas pela ordem neoliberal vigente. Dez anos depois da estreia de The Big Flame, o governo conservador de Margareth Tatcher atacou com especial violência os sindicatos e não tanto as liberdades individuais: deste modo os “antigos” trabalhadores que compõem, em grande parte, a falange dos “novos perigos”, não têm organizações fortes que os defendam.

Kitty Furtado

Ana Cristina Pereira (Kitty Furtado) é crítica cultural empenhada na diluição de fronteiras entre academia e esfera pública. Tem curado mostras de cinema (pós)colonial e promovido a discussão pública em torno da Memória, do Racismo e das Reparações. Doutora em Estudos Culturais, pela Universidade do Minho, e investigadora do CECS, coordena o GT de Cultura Visual da SOPCOM e coedita a VISTA: revista de cultura visual. Com Rosa Cabecinhas, publicou o livro Abrir os gomos do tempo: conversas sobre cinema em Moçambique (2022).

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