Taboo
Miguel Bonneville
11 de Setembro de 2024

taboo não é a tradução mais precisa do título original deste filme. gohatto é um termo antigo que, na verdade, significa “contra a lei” ou “contra as leis”, o que me parece estar mais de acordo com a visão e a vontade de ōshima que, numa entrevista, afirmou que “gostaria de lutar contra todo o tipo de autoridade e de poder”. ou seja, gostaria de conquistar uma certa liberdade.

“o maior obstáculo ao desenvolvimento no japão”, disse ele, “foi sempre o nosso sistema familiar. o poder excepcional conferido ao pai é um regresso ao feudalismo que foi consagrado na lei, mesmo depois da abertura do japão no período meiji”.

torna-se imediatamente claro, através destas duas declarações, o que atravessa a vida e o cinema de ōshima: uma visão altamente crítica ao sistema patriarcal — a hierarquia, a autoridade masculina, a rigidez das normas de género —, um dos pilares da sociedade feudal japonesa.

 

o filme é baseado em dois contos de ryōtarō shiba (autor que acredito não ter sido ainda traduzido para português); um passado no fim do período edo, durante o qual gohatto se desenrola, e outro passado no começo do período meiji, que marcou o início das tentativas de modernização do japão.

em gohatto encontramo-nos, então, no limiar entre vitória e derrota, num momento de tensões, incertezas, ambiguidades e transições.

 

quando o shogunato tokugawa (ditadura militar feudal) assume o controlo da nação, uma milícia samurai ao seu serviço começa a recrutar novos membros. um deles é sozaburo kano (ou kano sozaburo, se respeitarmos a ordem tradicional japonesa, na qual o sobrenome antecede o nome próprio), personagem que começa por instaurar, desde logo, uma ruptura visual ao recusar cortar as suas madeixas, não se conformando com a estética do grupo. este é um dos seus primeiros actos de resistência, estabelecendo logo uma tensão entre individuo e colectivo.

a sua androginia diferencia-o dos outros samurais tradicionais — os samurais sempre foram retratados como figuras que assumiam uma masculinidade tradicional, idealizada

—, mas também o alinha com uma tradição cultural que valorizava a ambiguidade e a fluidez de género: o wakashū — conceito que reunia vários elementos: uma categoria etária que situava os rapazes entre a infância e a maturidade; um papel social de adolescente, que ocupava posições subordinadas, como a de aprendiz ou protegido; e a concepção de “beleza juvenil”, vista como um objecto legítimo de desejo homossexual, conhecida como wakashūdo, “a atracção ou preferência por jovens rapazes”.

uma vez que as relações homossexuais eram aceites apenas entre adultos e rapazes que ainda eram wakashū, os seus protectores às vezes adiavam, para além dos limites socialmente aceites, a cerimónia de transição para a idade adulta (o limite sendo, normalmente, os 20 anos de idade).

neste caso, é sozaburo quem toma a decisão de adiar a transição — porque, muito provavelmente, sabe o efeito que provoca nos outros samurais. o desejo que sentem por ele expõe as suas fragilidades, perturba a hierarquia, põe à prova os ideais e os códigos de honra que fervorosamente seguem, e que são (ou deveriam ser) supostamente perfeitos e, por isso mesmo, inabaláveis.

 

e agora lembro-me de um verso do poema “os manequins de munique” de sylvia plath: “a perfeição é horrível, não pode ter filhos.”

plath sabe, e ōshima também, que a ordem, o dever, as normas e as proibições, limitam, condicionam, e até levam à loucura, mas não são insuperáveis. a perfeição falha. e falha sempre. a procura da perfeição, ou a própria perfeição, é inerentemente estéril, não consente a vitalidade, a criatividade. é uma espécie de morte.

sozaburo é também uma espécie de morte — ou várias. força que faz desmoronar a ordem por dentro.

e não consigo deixar de pensar também na vampirização do novo — numa sociedade (samurai) que, ao valorizar e explorar a beleza e a juventude (de sozaburo e dos wakashū como ele), as utiliza de tal forma que, em última análise, leva todos à ruína e ao sacrifício. a juventude como vítima perpétua da corrupção dos adultos. e também como espelho, expondo a humilhação da impermanência. o desejo como gatilho para fazer explodir (ou implodir) as regras e os preceitos. é um ciclo vicioso e fazemos todos parte do problema.

 

sozaburo transforma a sua beleza em resistência e provocação. força a confrontação com a efemeridade e a fragilidade das ordens estabelecidas, da vida. catalisador, crise existencial, sozaburo é conflito dentro do conflito dentro do conflito, mise en abyme, sobrecarga semântica.

Miguel Bonneville
Miguel Bonneville introduz-nos a histórias autoficcionais, centradas na desconstrução e reconstrução da identidade, através de obras que cruzam múltiplas áreas artísticas. Realizou filmes como Traça (2016), Um medo com duas grandes faces (2022), e Camera obscura (2023). Publicou os livros Ensaios de santidade (Sr. Teste, 2021), O pessoal é político (Douda Correria, 2021), e ainda as edições de artista Jérôme, Olivier et moi (Homesession, 2008), Notas de um primata suicida (2017), e, através do Teatro do Silêncio, Dissecação de um cisne (2018), Lamento do ciborgue (2021), Recuperar o corpo (2021) e Câmara escura (2022).

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