Suzanne Daveau (2019) reconstitui o percurso da geógrafa francesa no espaço e no tempo, dimensões comuns à geografia e ao cinema. Do traçado contra-cartográfico do filme de Luísa Homem emerge a história política do século XX, bem como a história da própria geografia nas suas relações complexas com as estruturas de dominação e o funcionamento do poder, em particular em contextos coloniais.
Companheira de Orlando Ribeiro, Daveau vive em Portugal desde 1965. A meio do filme, a personagem afirma, em voz-off, a propósito da sua relação com o geógrafo português: “A nossa vida e o trabalho eram a mesma coisa”. O tecido fílmico enlaça esses dois campos, o amor e a ciência. Porém, se a relação de Daveau com Ribeiro tem um peso significativo na primeira parte da narrativa, a figura masculina dilui-se pouco a pouco no relato feminino, se não feminista do filme. Mas a relação entre o amor e a ciência assume outras formas de expressão. Está presente na construção sensível do filme, no seu sistema de afectos, ligado aos processos de transmissão inter-geracional, em linha com a singular concepção da disciplina geográfica de Daveau. Para a geógrafa, “não há ciência, nem progresso no conhecimento, sem amor, sem paixão”, citação do intertítulo final que aponta para o peso da afectividade e da subjectividade nas diferentes etapas do método científico e para a objectividade como uma categoria histórica e ideologicamente modulada.[1] O sistema narrativo e estético do filme responde a esta concepção. As fotografias de campo de Daveau manifestam, por si só, a modulação da categoria de objectividade. Das fotografias do Jura às imagens mais recentes (Daveau deixou de fotografar em 2000), verifica-se uma maior atenção ao detalhe e um crescente interesse pela figura humana e pela relação entre o campo da observação e o campo do observado, aspecto que a montagem evidencia.
Suzanne Daveau é um filme auto-reflexivo a vários níveis. Na sequência de abertura, a mão, captada em plano-detalhe, que acaricia e oferece à vista os fragmentos de rocha — a mão da própria geógrafa sobre fundo arenoso — precisa a situação espácio-temporal. O gesto, repetido noutras sequências, explicita um espaço e um tempo, histórico e discursivo, um “aqui” e um “agora”. A mão que mostra define auto-reflexiva e dinamicamente a situação e as condições discursivas. Similar função têm os restantes mecanismos de mostração: a montagem dos arquivos fotográficos e cinematográficos inscreve-se numa lógica de apresentação mais do que de representação.
O filme desenha uma contra-cartografia em ruptura com as representações cartográficas e cinematográficas hegemónicas e as posições de ver-poder que delimitam a relação sujeito-objecto. O seu traçado assume duas dimensões fundamentais e não-exclusivas. O registo em Super 8 das imagens do presente (2016–2018) insere-as simbolicamente no mesmo horizonte temporal das imagens de arquivo fotográficas e cinematográficas (1951–1986). Se a re-ordenação não-hierárquica trans-geográfica (do Jura a Teotihuacán, da Serra da Estrela a Cabo Verde) e trans-temporal (as capas do passado e o presente enunciativo) dos arquivos fotográficos sonorizados de Daveau aponta para os seus itinerários temporais, materiais, discursivos, ideológicos e culturais ou, noutras palavras, para a sua história material, dando lugar, por si só, a uma contra-cartografia, o trabalho de uma continuidade elíptica entre o passado e o presente conduz a uma perspectiva não-cronológica, não-linear e não-progressiva da história, contrária à concepção teleológica e causal do projecto da modernidade europeia hegemónica — que a técnica cartográfica serviu, e na qual se inscreve. A ideia de contra-cartografia emerge também da relação sensível entre Daveau e Luísa Homem. A activação do ponto de vista do observador pelo do observado retira Suzanne Daveau de um quadro estritamente biográfico. Essa activação supera a separação sujeito-objecto que estrutura as representações cartográficas e cinematográficas dominantes, fazendo da longa-metragem uma reflexão (e uma sua formalização) sobre os mecanismos de relação — ou de “identificação”, como o indica o intertítulo final — nos sistemas de representação.
Um conjunto de sequências filmadas em Super 8 procura reconstituir aquela que teria sido a perspectiva de Daveau sobre o objecto filmado, e esta reconstituição sensível dá lugar a diferentes relações perceptivas e cognitivas com o espaço e o tempo. Noutras palavras, não só reafirma a posição espácio-temporal — e cultural — de observação, como também reactiva e actualiza dinamicamente as condições perceptivas e as perspectivas cognitivas históricas de Daveau, tornando-as sensíveis para o espectador. Paralelamente, a representação da paisagem, bem como da alteridade social (a ruralidade) e cultural (a geografia humana dos antigos territórios colonizados), inscrevem-se num processo de desperspectivação em que o observador adquire esse estatuto — o de observador — na medida em que o seu olhar é investido, afectado e activado pelo olhar de outrem. O olhar de outrem é, portanto, a própria condição do acto de observação.
Movimentos de passagem dos espaços-mundo da geógrafa à casa como lugar do íntimo estruturam Suzanne Daveau. Esses movimentos de passagem adquirem uma expressão formal nos modos de figuração de Daveau. Na transição das sequências iniciais — fundamentalmente, sequências de montagem de arquivos com voz-off e planos-detalhe de Daveau — à plena corporificação da geógrafa, esta cessa de ser uma personagem acusmática, que se ouve sem se ver, para se fazer presença. A sequência filmada no jardim de Daveau, no final do filme, torna a geógrafa presente através de uma lógica sensorial, sinestésica e multiperspectivista, prismática, fundada num princípio de “encavalgamento”, em sentido merleau-pontyano[2], entre o visível e o tangível. Nessa sequência, Daveau vê, toca e é vista pela cineasta e pela câmara, bem como por diferentes elementos vegetais, animais e minerais. Se o encadeamento entre o visível e o tangível pressupõe o recuo da visão como sentido preponderante — ou a emergência de uma visão táctil ou háptica — , a construção da sequência torna também perceptível uma continuidade (e reciprocidade) entre o observado, o observador e as diferentes perspectivas em circulação: perspectivas humanas, não-humanas e maquínicas, que se afectam mutuamente. A estética sensível de Suzanne Daveau convida a reaprender a apreender o mundo à margem das representações hegemónicas da paisagem[3] e da natureza.
A primeira versão deste texto foi publicada com o título “Anotações em torno do filme ‘Suzanne Daveau’” no Jornal do Doc’s Kingdom, nº 3, Série I, Julho de 2021, pp. 14–19.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
[1] Daston, Lorraine e Galison, Peter. Objectivity. Brooklyn: Zone Books, 2007.
[2] Merleau-Ponty, Maurice. Le Visible et l’invisible suivi de Notes de travail. Paris: Gallimard, 2001.
[3] Mitchell considera que o género paisagístico, florescente nos regimes imperiais, não é uma
simples manifestação estética, mas um lugar de afirmação política.
Mitchell, W. J. T.. Landscape and Power. Chicago: University of Chicago Press, 2002.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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