Ste. Anne, Rhayne Vermette
Missouri Williams
15 de Janeiro de 2023

Ste. Anne, de Rhayne Vermette, é um filme negro, tão negro que por vezes achei que o meu computador tinha entrado no modo sleep, ou pelo menos que devia haver algo de profundamente errado com as minhas configurações de luminosidade. Durante os seus momentos mais enigmáticos, ficava louca a tentar adivinhar o que estava a ver. Uma torre escura com uma janela solitária que se revelava um pedaço da camisa de flanela verde de uma mulher, cercado por duas colunas de sombra. Um crucifixo desfocado numa colina distante migra através do ecrã, primeiro na nossa direção, e depois para longe, novamente. Aquilo são pessoas ou casacos? Mais tarde, dois olhos cor de laranja, demoníacos, deslizam pelo ecrã e apesar de, num primeiro momento, pensar que devem pertencer a uma daquelas abóboras esculpidas no Halloween, percebo que fazem parte de algo muito maior, uma forma que diminui a mulher que vem confrontá-la, talvez até uma presença profana autêntica.

Isto faria sentido. Ste. Anne é sombrio em muitos aspetos. Predomina a sombra, mas também predomina uma espécie de presságio ou tristeza. A história, ou situação, encontra-se relacionada por corpos escuros colocados contra paisagens ansiosas e agressivas. Uma banda sonora pesada e implacável de estática e repetição faz com que até a mais mundana das ações pareça pertencer a uma coreografia secreta e lúgubre. Fotografias antigas são apagadas pela luz. As paisagens são obliteradas por ela. À medida que as personagens folheiam álbuns de família, um fantasma translúcido espreita por cima dos seus ombros. Num lugar como este, até as fronteiras entre meios parecem permeáveis. As cores infiltram-se de frame para frame e a superfície da película de 16mm é riscada e esburacada, o seu movimento tremeluzente e errático. Às vezes parece que um plano dura apenas o tempo que a câmara consegue aguentar. Enterradas na textura de vídeo caseiro destas sequências encontram-se algumas imagens magistrais, do tipo que deixam uma verdadeira impressão, e que fazem a pequena cidade de Manitoba, no Canadá, onde Ste. Anne se passa, parecer algo que emerge de um tempo mítico, antigo e abstrato. Noutros momentos, assistir ao filme é como recordar a infância de outra pessoa.

Em conjunto com este tipo de reticência formal, a recusa de Vermette em dizer qualquer coisa abertamente acentua o mistério do filme. Renée regressou a casa para a sua família e comunidade indígena Métis quatro anos depois de os deixar sem qualquer explicação. Nesse intervalo de tempo, a sua jovem filha Athene está a ser criada por Modeste, o irmão de Renée, e por Elenore, a sua mulher. Ninguém sabe o que pensar sobre o seu súbito regresso, e ninguém faz quaisquer perguntas. É apenas depois de Elenore finalmente expressar o seu medo que Renée parta novamente e leve Athene consigo que Modeste pergunta à sua irmã por onde andou e quais são os seus planos para a filha, embora não receba respostas. Ao longo do filme, o fardo de falar cai invariavelmente na imagem e na paisagem sonora. Tudo o que vemos no ecrã não é apenas filtrado pela subjetividade de outra pessoa mas dominado por ela, ainda que não fique claro de quem. Mesmo antes das novidades do regresso de Renée emitirem ondas de choque na sua unida comunidade, os sons de abertura do canto de pássaros dão lugar a um rugido que se eleva e eleva até que é cortado repentinamente, tão inexplicavelmente como começou. De quem é esta ansiedade? Da comunidade ou da família ou de Elenore ou de Modeste ou de Renée? Ou é algo que pertence ao seu mundo de uma forma mais geral? É impossível de dizer. Ste. Anne está repleto de substitutos e duplos. Numa cena, Renée atravessa uma ponte sobre os carris do comboio e encontra uma mulher louca bem vestida a gritar para o céu. Coloca uma mão nas suas costas antes de continuar a andar.

Na sua preocupação com a textura e a memória e no seu vago compromisso com a narrativa, Ste. Anne lembra-me, mais do que tudo, as curtas-metragens de Shuji Terayama, sobretudo The Eraser (1977). Existem os mesmos brilhos de cores, a mesma sensação de algo fugaz, meio vislumbrado e meio apreendido. Em ambos os casos, a distância é intencional, e a ambiguidade imposta. A subserviência da matéria à nossa ideia sobre ela é celebrada. Podemos ver isto regressando à presença implacável da escuridão. Perto do final de Ste. Anne, a família está sentada na sala escura antes de dormir e Elenore lê o livro que tem nas mãos. A página é um quadrado de sombra. É fisicamente impossível que esteja a ler dali. O que estamos a ver pertence a uma memória ou a um sonho; é uma cena absolutamente transformada pelo sentimento, uma imagem dominada pela subjetividade.

Missouri Williams

Coeditora da revista de cinema Another Gaze, Missouri Williams colabora, como cronista e crítica, com meios como The New York Times, The Nation, The Believer, Granta, Five Dials e The Drift. O seu primeiro romance, The Doloriad, foi publicado em 2022 pela Farrar, Straus e Giroux, nos EUA, e pela Dead Ink Books, no Reino Unido. Em conjunto com Daniella Shreir, está atualmente a trabalhar no lançamento da Another Gaze Editions, nova editora dedicada à escrita sobre cinema feita por mulheres.

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