Estamos em Newcastle, Inglaterra. Ricky (Kris Hitchen), desempregado, aceita um lugar de motorista numa empresa de entrega de encomendas na lógica da economia gig, sistema de trabalho instalado na sociedade ocidental, baseado no trabalho sem vínculo, direitos ou outras garantias. Abby (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora de pessoas idosas ou deficientes que vivem sozinhas, mantendo relações intermediadas pelo trabalho precário de cuidadora. Com o chamado “zero hour contract”, Abby depende dos telefonemas que lhe fazem para cada serviço.
A exploração do trabalho e as suas consequências para a vida social, a precaridade e os seus efeitos sobre uma família nuclear da classe trabalhadora estão no âmago do filme. Um olhar sobre o mundo no limite, através do qual Ken Loach nos leva para a quimera de um mundo em desagregação, assente num capitalismo desenfreado e na ideia de controlo social cada vez mais apertado pelo uso das novas tecnologias. Como diz Ricky, “eles sabem sempre onde estamos, onde andamos”. Nas entranhas da economia gig, a precaridade é mascarada pela fantasia de um trabalho mais livre, com maior flexibilidade e autonomia. Mas, para o cumprir, este pai de família tem de comprar e pagar a sua própria carrinha, que não é nunca dele: “It’s my business”, diz Ricky. Como resposta, recebe um “It’s our franchise!”.
Neste fim de um tempo, da era do trabalho sindicalizado, a uberização das relações económicas transforma e radicaliza todo o entorno: os amigos, a família e as sociabilidades. Abby e Ricky navegam nesse mundo cruelmente real, com um filho teenager (Rhys Stone) que começa a desorganizar-se e uma filha mais nova (Katie Proctor) que sinaliza as angústias que tão bem conhecemos: as ausências dos pais, as discussões e os conflitos. Mas os impactos dos acontecimentos na vida familiar parecem ser apenas o indício de dinâmicas familiares futuras. Se podemos criticar o filme por olhar os pobres como os “outros”, esses outros somos nós. Nós que navegamos no controle a que nos submetemos, na solidão das tecnologias digitais e na inefável relação com as instituições.
O filme empodera, no entanto, as várias vozes e presenças de forma sofisticada, mas ao mesmo tempo subtil, através de uma câmara atenta aos olhares, aos gestos, aos impasses. Os dois filhos transportam uma esperança, e Ken Loach tem sido sempre um mestre a representar os mais jovens! O filho adolescente, com a sua revolta, e a filha mais nova, com a sua tristeza e os seus medos, representam uma nova possibilidade, são pessoas por vir. Parece haver também uma afeição ao feminino: o trabalho de Abby é precário de forma semelhante ao do seu marido, no entanto, há ainda o trabalho doméstico, os cuidados com os filhos e, por fim, o trabalho emocional, tanto em casa quanto no trabalho. Loach enfatiza as maneiras pelas quais a experiência de trabalho precário de Abby diferem por ser mulher e mãe, mas não as romantiza: no final, o filme retira a esperança nas lutas e no ethos de Abby, que acredita na partilha, na solidariedade, nos afetos.
O filme nasce de uma pesquisa longa com pessoas reais. Algumas destas histórias foram encontradas nas instituições retratadas em I, Daniel Blake (2016), que abre já as portas para a ideia de solidão e a falta de união destes trabalhadores precários. Na melhor tradição do realismo britânico formada num tempo em que o documentarismo televisivo e o direct cinema se vincularam, o cinema de Loach vive de argumentos retirados de biografias concretas, criados organicamente ao longo de grandes conversas entre Laverty, guionista e escritor, e Loach, e interpretados por actores e não profissionais. Nunca esquecendo essa dimensão de documento do seu cinema, há também um afrontamento “ativista” e uma enorme generosidade na tentativa poética de reproduzir um certo “real”, que fazem parte da vontade de fazer um cinema que possa atuar sobre a paisagem social e política contemporânea. Ao longo de 50 anos, e até este ano, em que afirmou que iria abandonar o barco, Ken Loach trabalhou sobre momentos históricos como a independência da Irlanda, a guerra civil espanhola, ou a luta operária britânica. Mas, a partir de I, Daniel Blake, o cinema de Loach seguiu um outro rumo: o de uma espécie de impasse, de bloqueio, de fim de ciclo. No início, é dito a Ricky que vai ser dono de si: “You are your own master”, mas chegamos ao fim desta viagem com a sensação de que as nossas vidas não nos pertencem. Isto apesar de toda a vitalidade que tem esta família. Uma família como tantas outras.
Catarina Alves Costa
Catarina Alves Costa é realizadora e antropóloga, doutorada pela na Universidade Nova de Lisboa com a tese “Camponeses do Cinema. Representações da Cultura Popular no Cinema Português”. Realizou, entre outros filmes, Margot (2022), Pedra e Cal (2016), Falamos de António Campos (2010), Nacional 206 (2009), O Arquiteto e a Cidade Velha (2004) e corealizou Um Ramadão em Lisboa (2019). É Professora Auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e Coordenadora do Mestrado em Antropologia — Culturas Visuais e do LAV — Laboratório Audiovisual do Centro em Rede em Antropologia (CRIA). É autora do livro Cinema e Povo (2022, Edições 70).
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