Sobre-vestir: Histórias de Cinema e Moda percorre, de forma ilustrativa, um campo vasto de possibilidades relacionais entre a prática do cinema e da moda. Mas, no limite, não é um ciclo de cinema fechado na disciplina da moda. É um programa que se propõe a analisar a forma como o vestir pode abrir portas ao entendimento de narrativas culturais e de linguagens de cinema, entre obras de arquivo e contemporâneas. Podemos até dizer que este programa tenta demonstrar que a ideia de um filme é indissociável da intencionalidade do que nele se vê vestido ou despido, sendo o vestuário uma ferramenta central na construção de visualidades, dramaturgias, conceitos ou ideologias.
O vestir, a moda e a indumentária habitam o nosso quotidiano e estão frequentemente relacionados com memórias profundas. Assim como o cinema, a moda muitas vezes reflete as circunstâncias sociais e joga com o tempo passado, presente e futuro. Evoca conceitos de beleza distantes da nossa realidade e leva-nos a explorar o subconsciente. Demarca formas de ser e de estar no mundo motivadas pelo desejo de pertencer a uma comunidade ou de se destacar nela.
Num campo de ligações tão amplas e complexas como este, Sobre-vestir escolhe principalmente desvendar nomes imprescindíveis na história do design e o seu trabalho em cinema, compreender o vestuário como simultaneamente motor e espelho de tensões culturais e políticas, e destacar a moda como fator central na criação de géneros de cinema, nomeadamente o horror e o drama histórico.
O conjunto dos filmes programados reflete sobre a importância sociológica dos códigos vestimentares na expressão de comunidades culturais consideradas minoritárias, periféricas ou estigmatizadas e sobre a afirmação de novos valores estéticos, simbólicos e relacionais — que o cinema ajuda a expandir. Mas explora também a rutura estética que representaram colaborações entre designers de moda e cineastas na construção de uma renovada visão sobre a matéria visual — o movimento e o entendimento dos corpos em filmes que invariavelmente espelham as correntes mais subtis das metamorfoses sociais num tempo histórico.
Este programa abre e encerra com o génio de Jean Paul Gaultier, que trouxe a desconstrução e a derisão, próprios da moda de vanguarda, ao cinema de autor, desde Peter Greenaway, mas também ao universo do videoclipe de que é exemplo "Nothing Really Matters", de Madonna.
Com Jubilee (Derek Jarman), Shrines (Jacolby Satterwhite) e Scorpio Rising (Kenneth Anger), mostramos a forma como estéticas queer, colocando o vestir e despir em tensão, têm o poder de comentar contextos políticos, capitalistas e de propaganda, também em diálogo com outras manifestações artísticas, nomeadamente a música — Scorpio Rising, de Anger, terá mesmo sido pioneiro no uso de música original em cinema. Sendo o feminismo e crítica do patriarcado assuntos orientadores em Jubilee, é com Teknolust (incursão no cinema comercial de Lynn Hershman Leeson, Leão de Ouro na última Bienal de Veneza), que apresentamos este desconchavado e humorístico exercício de sci-fi em torno do poder dominador sobre o homem, onde a exuberância se espelha nos códigos de vestir de Tilda Swinton, com desenho do mestre de moda Yohji Yamamoto.
Integramos debates afrodiaspóricos manifestados pelo vestir presente nos filmes Ôrí (Raquel Gerber e Beatriz Nascimento ) e Touki Bouki (Djibril Diop Mambéty), narrativas que descentralizam referências do Norte Global e evocam maneiras de pensar moda e estilo, através de perspetivas negras. Nas duas obras, a moda pode ser compreendida como potencializadora dessas corporeidades e o vestir apresenta-se como enunciador de memória e cultura, evidenciando também encontro e, muitas vezes, tensões entre tradição e modernidade, deslocamento e ancestralidade.
Numa relação surpreendente, Vanitas (Paulo Rocha) e Qui êtes-vous, Polly Magoo (William Klein), filmes separados por quase quarenta anos, versam sobre as ficções inquietantes da moda, a intriga que a costura e o espetáculo da vaidade carregam, os subterrâneos laços entre a beleza efémera e a pulsão de morte.
Para as famílias, propomos Breakfast at Tiffany’s, onde a dupla Hepburn e Givenchy eternizou e tornou clássica a composição de vestido preto com o uso de luvas, óculos escuros e o colar de pérolas. Inspiração para uma geração que viu na personagem Holly Golightly um exemplo de elegância e sofisticação, explicando a forma como cinema sempre conseguiu enformar o gosto — e o consumo.
E sugerimos ver Ran (Akira Kurosawa), a partir de um olhar observador do trabalho de guarda-roupa e figurinismo de Emi Wada (vencedor de um Óscar da Academia), ao mesmo tempo que o apresentamos como exemplo ilustrativo da importância do vestir na criação de dramas históricos.
Escolheu-se ainda abrir todas as sessões de Sobre-vestir com breves exercícios de estilo que, de forma vincada, absorvem cânones de vestir e de moda, e navegam entre o cinema de artista e o anúncio comercial. Com eles, tentamos explicar que a imagem em movimento sempre dialogou com o design de moda, criando espaço para objetos fílmicos por vezes confusos, indefinidos e nem sempre compreendidos, mostrando-se ainda que a moda será dos veículos mais interessantes para compreender a forma como, ao longo da história, o “cinema publicitário” foi quebrando barreiras formais, mas também éticas com o que se entende por “cinema de artista” e de “autor”.
Este é um programa-convite para pensar sensações e memórias, conversas e silêncios, inerentes aos processos do vestir e do despir. E pensar ainda como essas relações tecidas entre os universos da moda e da imagem em movimento podem enunciar mensagens e histórias. De forma bela, original, e por vezes polémica ou promíscua.
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