So Pretty, Jessica Dunn Rovinelli
Lolo Arziki
31 de Março de 2023

Dirigido por uma mulher trans que pega num romance do séc. XX e adapta a questões de afeto do séc. XXI, So Pretty é um retrato íntimo de um grupo de pessoas trans que coabitam numa relação de amizade e afeto não monogâmico.

O que a contemporaneidade tem a dizer sobre diferentes possibilidades de existência e de afeto não é nada de novo. É apenas um resgate de múltiplas formas de ser e estar que foram reprimidas e manipuladas ao longo da História pelo pudor colonial.

Jessica Dunn Rovinelli traz no olhar a proximidade a este tema e a sua própria vivência enquanto pessoa queer. Ao colocar-se em cena, a realizadora faz com que a história seja muito mais íntima e genuína, a meu ver. Não temos uma pessoa externa àquela realidade a fazer um estudo sobre aquela comunidade, sob uma perspetiva já formatada ou idealizada sobre aqueles corpos. Pelo contrário, temos uma pessoa que é parte dela e nos conta como é viver naqueles corpos.

O que eu acho muito interessante, e sem dúvidas para mim o ponto alto do filme, é que ao mesmo tempo que Rovinelli se aproxima da história para se colocar na pele da personagem Tonia — e para nos contar os desafios que seu corpo carrega enquanto mulher trans que procura afeto de forma livre e vive seus conflitos de identidade — procura se distanciar da história para dar lugar de fala a outros corpos marginalizados (como é o caso das personagens dark e brown skin que além de questões identitárias de géneros, vivem ainda conflitos raciais).

A personagem Erika, para mim das mais conseguidas do ponto de vista de sua construção, salienta algumas questões que, para mim, enquanto pessoa trans negra, socializada como mulher brown skin, me são bastante próximas. Eu vivo a mesma intimidade que Erika vive, onde as relações de afeto precisam ser pensadas com maior cuidado pois poucas vezes somos colocadas como merecedoras de afeto e a solidão é muito presente em nossos corpos. A questão da solidão da mulher brown e dark skin é apresentada neste filme de forma muito clara, quer nos silêncios e nas falas da personagem, quer na forma como ela é enquadrada até às últimas cenas do filme.

Outro ponto do filme a notar é a questão da sexualidade, e a forma como ela é filmada. Infelizmente o cinema tem pecado na forma como se representa a comunidade queer e a comunidade negra. Esses corpos têm sido vítimas de estereótipos e filmados muitas vezes de formas bestiais como se fossem entreter espectadores de circo ou zoo. Quando se discute questões de lugar de fala é precisamente porque pessoas negras e pessoas queer exigem hoje se ver representadas de forma digna. Mas quem deve filmar esses corpos? Quem consegue ter sensibilidade para filmar esses corpos? Como filmar, por exemplo, a relação de afeto e não monogamia em corpos que sempre foram hipersexualizados e fetichizados? O olhar da realização de Jessica, que também está muito presente na montagem do filme (aliás, é a própria a montar o filme), consegue humanizar esses corpos em cenas que geralmente são tratadas de formas espetacularizadas no cinema. Pessoalmente, não sinto nisto uma exploração do sexo, o que claramente se deve ao facto de que para aqueles corpos a sexualidade está para além daquilo que foi definido como sexo determinado pelo uso do órgão genital, ou a definição de prazer pelo patriarcado. Entre si, as personagens determinam o que é prazer, o que é afeto, quando e como estar presente, e quando não estar. Mas quando falamos de relações sociais e políticas a ausência nem sempre é entendida e isso também o filme questiona: O que é estar presente para certos corpos? O que é luta para certos corpos? Muitas vezes dentro de lutas de esquerda exige-se uma presença coletiva e não se reflete que o coletivo é feito de individualidade, e que cada indivíduo tem um corpo e que cada corpo tem sua história e seus traumas O filme, nesse sentido, ainda questiona o policiamento e a violência contra corpos negros, indígenas, brown, dark, no contexto racial estadunidense.

Nesse sentido, So Pretty é tão pessoal quanto político porque a intimidade de corpos marginalizados é atravessada diariamente por conflitos sociopolíticos. Por mais que o desejo dessas pessoas fosse apenas existir, o direito à existência tem sido negligenciado e o que sobra é criar estratégias de sobrevivência onde, pelo menos, as pessoas se possam sentir acolhidas.

Lolo Arziki

Cineasta formada em Vídeo e Cinema Documental e com um mestrado em Estética e Estudos Artísticos, Lolo Arkizi realizou, até à data, uma curta-metragem documental, Homestay (2017), premiada em dois festivais, em Portugal e em Cabo Verde, e três vídeo-performances, exibidas em galerias de arte na Europa e no Brasil. Recentemente, após ter denunciado que dois dos seus projetos fílmicos foram alvo de censura em Cabo Verde, Arziki distanciou-se da realização, dando continuidade à sua prática de programação e curadoria em festivais e mostras internacionais de cinema.

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