Simon Chama, Marta Sousa Ribeiro
Raquel Schefer
18 de Junho de 2023

Primeira longa-metragem da cineasta lisboeta Marta Sousa Ribeiro, Simon Chama (2020) debruça-se sobre a última semana de escola de Simon, interpretado por Simon Langlois. Tendo como ponto de partida a ficcionalização de elementos da biografia da realizadora, a longa-metragem, ancorada entre o presente, o passado e a prefiguração do futuro, oferece um panorama sobre a vida de um adolescente que cresce na periferia de Lisboa, sobre o pano de fundo das transformações infra-estruturais da cidade. Marcado pelo divórcio recente dos pais e a partida do pai, Bernardo (Bernardo Chatillon), para França, o quotidiano de Simon transcorre entre a casa em que vive com a mãe, Rita (Rita Martins), e a irmã mais nova, Mariana (Mariana Achega), o colégio e as suas deambulações — deambulações físicas, só ou acompanhado pelo amigo Miguel (Miguel Orrico), por uma Lisboa pós-industrial em processo de gentrificação, e imaginárias, através dos filmes visionados no computador que o levam a planificar uma viagem, qual rota de fuga, para os EUA.

Simon Chama é uma obra cinematográfica complexa a vários níveis, desde logo pela sua estrutura narrativa, que deve ser lida em função dos modos de produção. A longa-metragem é o resultado de três capítulos distintos, filmados ao longo de cinco anos, entre 2015 e 2019, em diferentes formatos, acompanhando o crescimento — e as transformações físicas e psicológicas — de Simon Langlois. Se o esqueleto narrativo — e, em certo sentido, o sistema formal — da obra decorrem, por conseguinte, desse longo processo de produção, a sua composição episódica, remetendo para os procedimentos intra-textuais¹ de Balzac e para o género literário do folhetim, cultivado pelo escritor francês e também por Dostoiévski, entre outros possíveis exemplos, inscreve-se numa genealogia cinematográfica que tem como ponto de partida Les Quatre cents coups (1959), de Truffaut, um dos filmes inaugurais da Nouvelle Vague, e a personagem de Antoine Doinel, interpretada pelo actor Jean-Pierre Léaud, filmado pelo cineasta francês entre a infância, a adolescência e a idade adulta. Contudo, se a personagem de Doinel está presente em cinco filmes de Truffaut, a montagem de Simon Chama articula as camadas temporais dos três capítulos numa só narrativa não-linear, intersectada por analepses (flashbacks), prolepses (flashforwards) e intercalações.

O longo processo de produção de Simon Chama manifesta-se também na utilização de diferentes formatos, o que, além de tornar sensível a história material do filme, evidencia a historicidade dos próprios dispositivos cinematográficos e as variações tecnológicas. Deste modo, se a coexistência entre formatos remete, por si só, para as diferentes temporalidades do processo de produção, a construção narrativa funda-se num sofisticado sistema de analepses e prolepses, passagens entre os planos temporais da vida de Simon. A representação do passado é aqui aliada à prefiguração do futuro, da viagem americana por vir, como, por exemplo, nos planos de aviões a cruzar as nuvens, evocação da série fotográfica Equivalents (1923), de Alfred Stieglitz.

A prefiguração do futuro é, por seu turno, indissociável da efabulação e da dissolução da separação entre a esfera material e a esfera onírica, mnemónica e efabulativa (atente-se na primeira sequência da fisga). A figuração do sonho, da memória e da efabulação de Simon e de outrem (da mãe) são, em certas sequências, objecto de uma reconfiguração auto-reflexiva do tamanho da janela do écran em formato 720p, écran dentro do écran, também utilizada no caso dos materiais de arquivo. A confluência narrativa entre essas diferentes temporalidades gera, em determinadas sequências, um sistema próximo do discurso indirecto livre, em que se fundem, tornando-se indetermináveis, variadas posições enunciativas.

Simon Chama é também, a vários títulos, um filme de reemprego de arquivos. As sequências de reemprego de arquivos operam como vectores de intercalação dos diversos blocos narrativos, dotando a longa-metragem, paralelamente, de uma tessitura intermediática. No seu computador, Simon visiona extractos de filmes tão heteróclitos e de diferentes géneros cinematográficos, como o cinema amador e o cinema documental, quanto Journey Through a Day (1967), de Dale Johnson, e Children Underground (2001), de Edet Belzberg. O reemprego dos arquivos dos filmes visionados, também em formato 720p, consolida um imaginário — o imaginário do American Dream e o seu reverso —, vinculando Simon Chama, material e formalmente, à linhagem do New American Cinema — e, em particular, à obra de Morris Engel e Ruth Orkin, também protagonizadas por crianças e adolescentes — e do cinema independente norte-americano. A interpenetração entre os sistemas de representação da ficção e do documentário, marca estilística do New American Cinema e das suas derivações, é, aliás, uma das estratégias formais de Simon Chama, filme que traça uma cartografia, “real” e imaginária, de Lisboa e da sua periferia.

A longa-metragem de Sousa Ribeiro redefine, paralelamente, a relação entre margem e centro e entre observador e observado. O carro em que Simon se desloca com a mãe (e, por vezes, com a irmã) para a escola e para a cidade é fundamental para essa dupla redefinição. Se a deslocação do veículo, descentrando a personagem do principal décor do filme, a casa familiar, re-estrutura a relação entre Lisboa como centro e a periferia enquanto margem, é também durante essas travessias que a figuração da “percepção panorâmica”² de Simon olhando pela janela amalgama e sobrepõe, através do movimento e dos reflexos, o lugar do observador e o lugar do observado num mesmo plano, recordando a fotografia e certas obras cinematográficas (On Animal Locomotion, de 1994, por exemplo) de van der Keuken. Também os movimentos de câmara, de uma steady-cam performativa, respondendo às acções das personagens, improvisadas em certas sequências, contribuem para essa redefinição que questiona incisivamente a fronteira entre o dentro e o fora.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.



[1] Numa das suas acepções, a passagem das personagens de uma obra para outra dentro da produção de um mesmo autor.

[2] Schivelbusch, Wolfgang. The Railway Journey. The Industrialization of Time and Space in the 19th Century. Los Angeles e Londres: University of California Press, 2014.

Raquel Schefer

Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.

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