Silverlake Life: The View from Here, Peter Friedman e Tom Joslin
Jemma Desai
17 de Março de 2023

I

Pedra

Fardo ou peso/arma ou ameaça

/Um compartimento silencioso

/Um envelope

/Fundação, substituto ou talismã

Um dia, neste mesmo lugar — isto fica a menos de 300 metros da minha casa, sabes — vinha de bicicleta até aqui abaixo, quando tinha cerca de 14 ou 15 anos. E deparei-me, acho que foi mesmo perto desta árvore, com uma pedra, mesmo aqui, perto da rua, e debaixo desta pedra… estavam bilhetes… e os bilhetes eram de dois amantes gay, e estavam a comunicar quando se iriam encontrar. Então escrevi-lhes (todo cagado, claro) mas escrevi-lhes a contar-lhes, e depois regressei e eles deixaram-me uma revista porca. Todas as mães encontram revistas porcas que os miúdos guardam, toda a gente sabe que as escondem debaixo do colchão, mas não revistas porcas masculinas, sabes, sendo gay desenvolves todo este secretismo interior em que aprendes a não dizer às pessoas, sabes, e a esconder coisas e a encobrir coisas e isso começa a mudar a tua personalidade. E aprendes a socializar com mulheres e a fingir que segues o caminho que todos os teus pares estão a seguir, quando no final é tudo uma espécie de mentira. E aprendes a mentir mesmo bem. E estou cansado de mentir, não quero mentir mais. Por isso, fiz este filme.

A pedra aparece aos cerca de 15 minutos de Silverlake Life: The View from Here, dentro de um clipe de um outro filme, Black Star: Autobiography of a Close Friend (1977). A história antiga sobre a pedra evoca firmeza, mas o seu posicionamento nesta nova história aponta para a instabilidade — para as formas como a criação de significado queer perdeu o rumo durante e após a SIDA. Antes, o silêncio, ou o estar em silêncio, o encerramento de segredos, tinha uma miríade de possibilidades: agora essa cobertura fica sobrecarregada com uma linearidade em direção à morte.

A pedra (e a sua história) torna-se uma substituta para o tempo — segura e liberta a sua passagem: puxando-nos de volta para o passado para que possamos olhar para o presente e imaginar o futuro novamente. Colocar o significado que encerra a pedra do filme mais antigo dentro do filme mais recente é um ato de nostos, um ato agonizante, que coloca o corpo mais jovem e mais saudável do nosso herói num filme sobre um corpo mais velho e mais doente. As dimensões do tempo são marcadas pelas tensões dos corpos no ecrã; às vezes os corpos são jovens, vigorosos, saudáveis, outras mais velhos, mais doentes, mais apáticos. À medida que os corpos mudam, a paleta de cores do filme, a sua película e a sua qualidade também mudam. No filme mais antigo e mais saudável, o nítido preto-e-branco dá lugar às cores mais vivas, uma nítida transição que permite que ideias de proteção e supressão, contenção e transmutação, mantenham as suas margens e uma coesão narrativa. O corpo “doente” de Silverlake Life: The View from Here, contudo, é composto por vídeo iluminado intimamente, marcado por uma espécie de sépia dourada, que suaviza ao mesmo tempo que também serve para documentar as mudanças na textura e luminosidade da

pele pálida de Tom e de Mark. À medida que as cores mudam, também muda a possibilidade dramática da esperança.

À medida que o filme regista o tempo linear que a SIDA pressiona sobre ele, o significado da esperança torna-se menos sobre uma expectativa fixa ou desejo de liberdade, e mais parecido com uma confiança de que os atos de expressão e testemunho valem a pena, independentemente do resultado.

À medida que a pedra viaja entre estas duas realidades, contém todas as possibilidades de esperança — um nó sólido que não precisa (não pode) ser desembaraçado.


*

Mais tarde Tom, devastado pela doença, escreve uma carta, na qual se lê “Amo-te.” Em vez de a esconder por baixo de uma pedra, o seu amante tira-a das suas mãos e passa-a à sua mãe. Mais tarde, estes dois pares de mãos lavam e afagam amorosamente o corpo de Tom, abraçam-no e depois limpam as lágrimas um do outro.


II

Céu

/região das nuvens ou ar superior/atmosfera superior da terra

/céus ou firmamento

/grande arco ou abóboda

/o céu superno ou celestial

Mark senta-se sozinho num telhado e lê a partir de um volume de ensaios chamado Out of the Closets: Voices of Gay Liberation (1972), que reúne textos de consciencialização, autoafirmações alegres, manifestos zangados, e reflexões pessoais. O céu azul que está por detrás dele aparece após a história de Tom sobre a pedra. O céu explode num azul que parece quase impossível. Enquanto o céu explode em impossibilidade, Mark vocaliza a clareza que emerge quando se recusa a miséria e a vergonha, quando se imagina a luminosidade da alegria e do orgulho:

À medida que começamos a ver quem somos, temos que ver que detalhes pequenos e aparentemente sem importância, como palavras e etiquetas, contam uma história, uma espécie de conto de fadas. Por isso, deixem-me falar um pouco sobre a diferença entre gay e homossexual. São opostos. E não apenas duas palavras que expressam objetos semelhantes porque apenas uma fala sobre objetos. De forma a compreender estas palavras, temos de compreender que esta é uma sociedade multicultural, mas na realidade reconhece apenas uma cultura, as outras estão sob ataque genocida. Por isso para nós, agora, é belo ser ostensivo. Apesar de a certa altura ter sido algo menosprezado, acabámos por ver que foram as fadas, os paneleiros, as queens, etc., que desafiaram o sistema pela primeira vez na sua essência, através da sua ostensividade, ao dizer que tinham o direito de ser super gay, porque o ostensivo é belo. Por isso, ele também sabe que só quando o comportamento ostensivo, assim apelidado pelos heterossexuais, for aceite com respeito é que vamos ser, em algum sentido, livres. O pessoal é o político, o económico e o cultural. Gay É A revolução.

Mark não está a cantar, mas na minha cabeça, enquanto lê, está a cantar, porque está a formar palavras que não são dele, usando a sua voz para lá da resistência e do confronto usando-a para falar, mas também para escutar.


III

Cinza

/Um símbolo de dor

/arrependimento

/ou humilhação

No início do filme, a voz de Mark conta-nos que a coisa de que mais se lembra sobre o seu amante é a sensação que ele dava. Enquanto fala, a câmara passa sobre as cinzas de Tom e das caixas de cassetes que são o filme que estamos a ver. A câmara mostra-nos que nunca conheceremos Tom da forma como Mark se recorda dele. A cassete e a nossa observação da mesma, tal como as cinzas enviadas para o seu amante, nunca poderão equivaler ao que foi perdido.

Na sua produção e desenvolvimento, Silverlake Life: The View from Here incorpora a simultaneidade do desejo, do luto e da possibilidade criativa queer. Instigado por Tom para documentar o impacto da SIDA no seu amante Mark, quando o próprio Tom fica gravemente doente, Mark torna-se o nosso narrador. Mais tarde, os amantes compreendem que ambos terão desaparecido antes do filme ser feito, e as caixas de cassetes são oferecidas a Peter para que crie e monte um filme, o que faz após a morte de Mark.

Tanto a abertura do filme como a impressão da prática de mútuo testemunho, que é deixada nele desde que começou a ser feito, deixam-nos com um desejo por algo que pode apenas ser vislumbrado e nunca fixado. Esta não é uma nostalgia partilhada que remete o passado para o passado, como um artefato que já não pode exigir nada de nós, mas tal como a pedra que é um nó, este desejo forma um emaranhado de tempo, prolongando-nos na realidade do momento presente, e desdobrando-nos ao contrário para saborear a dor da saudade.

Numa entrevista de 1993 ao LA Times, Friedman anda à volta do tipo de esperança que é possível ao montar um filme como Silverlake Life, que “envolve duas coisas que esta sociedade tenta manter fora da vista: a morte e a homossexualidade”.

Lutando com lealdade pela integridade dos seus amigos — para levar a que as pessoas se relacionem com a obra tal como Tom e Mark quereriam — chama a atenção para os limites do veículo (que deve ir ao encontro do mundo exterior para encontrar o seu público), através do qual preserva a memória deles. Relata respostas insensíveis e irrefletidas de festivais de cinema e exibidoras que preferem desviar o olhar do sofrimento no ecrã, adiando o seu desconforto ao questionarem se um registo tão íntimo seria sequer uma obra artística: “Disseram-me que este era um filme que o Tom e o Mark não quereriam exibir — que estavam a fazê-lo apenas para si próprios. Fiquei sem palavras quando ouvi isto”. Diz: “O Tom passou oito meses a trabalhar no filme e a fazer circular propostas para todas as fontes de financiamento em que conseguiu pensar, e não queria que fosse exibido?”

No centro desta reação está algo sobre o legado ou a herança das narrativas sobre a SIDA no ecrã, que podem ter permeado a nossa consciência através dos principais canais nos anos 80, 90, e no início dos anos 2000. Nestes filmes, os comportamentos sociais foram atenuados historicamente ou neutralizados e atribuídos a uma falha de carácter — uma mãe desinteressada, um melhor amigo mau. É aqui que podemos ter assimilado a informação de que a SIDA não podia passar através do contacto da pele, através de beijos ou de dar as mãos, mas é também aqui que interiorizamos que a empatia para com aqueles que contraíram VIH e SIDA era baseada numa narrativa generosa e assimiladora, onde aqueles que não se conformavam não conseguem sobreviver.

Na sua meticulosa documentação sobre as formas que o relacionamento social forma e é formado por uma atmosfera estruturada pela negligência do Estado — por exemplo, no conjunto de questões humilhantes e heteronormativas que uma pessoa queer doente que deseja continuar a receber cuidado médico tem de responder no ponto em que mal consegue manter os olhos abertos devido à dor — Silverlake Life mostra como a experiência vivida da SIDA foi resolutamente antitética à conformidade: uma forçada diminuição da fé no, e alienação do, Estado.

Se Silverlake Life se afasta das representações homogéneas da SIDA no ecrã, também resiste à categorização fácil dentro do cinema experimental ou avant-garde, uma vez que sobrepõe os seus compromissos políticos aos seus compromissos formais. É, por vezes, despudoradamente didático, enquanto faz uso, ao mesmo tempo, de uma honestidade emocional radical. Quando Tom morre, o primeiro instinto de Mark é pegar na câmara, este impulso está para lá do género do documentário ou do filme-diário, é como Joshua Kaplan descreveu “o cinema enquanto um ato de amor desesperado e inútil”. Este ato de amor encontra-se intrinsecamente ligado ao desejo político do filme e à sua posição dentro de um ativismo mais alargado sobre a SIDA. Ao recusar normas sociais ou cinematográficas para desviar o nosso olhar através da respeitabilidade, desconforto ou “discrição”, Mark faz eco de ações radicais como as do ACT UP, em que ativistas espalharam as cinzas de pessoas com SIDA no relvado da Casa Branca para chamar a atenção para a realidade material da indiferença do Estado.


IV

Água

/transparência e brilho

/Uma bebida para o crescimento

/A base fluída da vida de cada organismo vivo

/para preencher com lágrimas

/para amenizar através da omissão


Talvez haja uma outra forma de pensar em Silverlake Life fora da ideia de filme. Escondida na forma como a herança da câmara, das cassetes, e das histórias que estas contêm, é passada entre amantes, amigos, cineastas, professores, estudantes, encontra-se uma expansão da categoria cinematográfica numa estratégia profundamente investida de performance queer, que oferece uma outra forma de relação com o trabalho e novas possibilidades de envolver os espectadores.

Ofereço-vos a palavra performance e peço-vos para considerarem as multitudes de relações sociais e transformação que pode conter. Convido-vos a pensar sobre a performance da forma que Michael Chekhov, praticante de teatro russo-americano fez; como relacionada com uma atmosfera que não muda apenas o intérprete, mas que se infiltra entre o intérprete e o público. Uma que revela relações sociais, abrindo a possibilidade de as transformar.


*

Mark expande-se para um corpo de água; um lugar em que encontra tempo para descansar e amar o corpo que o mantém vivo, mas que também o está a matar, lentamente. Mais tarde, dobra esse mesmo corpo para se tornar o mais pequeno que os seus membros permitem, cuidadosamente, elegantemente como uma peça de origami. A partir destas dobras cuidadosas e intencionais, desenrola-se uma história:

A mulher que nos convidou a vir aqui, que é proprietária do lugar, é muito, muito simpática para nós, e ela gostaria que ficasse de t-shirt para não assustar outras pessoas. E eu faço isso, mas depois isso também alimenta aquela parte má de mim de ser inseguro, não gostar do meu corpo e assim. Sobretudo preocupo-me com essas coisas porque não quero aborrecer outras pessoas que têm de olhar para mim, feio. Por isso, isto acaba por alimentar uma parte má de mim. Normalmente estaria orgulhoso, porque normalmente fico orgulhoso por estar vivo há tanto tempo como estou, sabes, só tipo, “Vai-te lixar. Estou a viver, não estou morto.”

Falando para a câmara, o seu testemunho torna-se uma performance que recusa que um corpo se dobre dissimuladamente segundo as linhas retas do dever e da conformidade, e em vez disso dobra-se em compromissos de prazer e extroversão.


*

Mais tarde, na sua sala de estar, o seu corpo não se encontra nem aberto nem fechado; encontra-se em movimento. Para além da música, está silencioso. Para além da câmara, está sozinho. Ao dançar, a câmara luta para encontrar o centro, parecendo chamar a atenção para a forma como a sua performance existe sem a câmara, apesar dela. O seu movimento deixa espaço para que regresse a si, a um eu que estava acostumado não a estar sozinho, mas com outros. A sua dança lembra-me a conceção de José Esteban Muñoz sobre a pista de dança enquanto sítio que “aumenta a nossa tolerância para práticas incorporadas… [exigindo] na abertura e na proximidade das relações com outros, uma troca e uma alteração da experiência cinestésica através [da qual] nos tornamos, em certo sentido, menos como nós e mais uns como os outros.”

Enquanto Mark dança, sozinho na sua sala, estamos com ele. Os seus olhos estão fechados, enquanto o refrão “take my heart way” passa em repetição no gravador. Neste momento, vemos o seu corpo, como a pedra, o céu, a cinza, a água, ir para além da violência do Estado e da negligência social; em direção à possibilidade de outra coisa.

Jemma Desai

Doutoranda na Central School of Speech and Drama (Londres), presentemente a pensar através de ideias de liberdade em imagens em movimento e performance, Jemma Desai relaciona-se com programação de cinema através da pesquisa, da escrita, da performance e da pedagogia. Trabalhou por toda a indústria cinematográfica, em lugares como Berwick Film & Media Arts Festival, Blackstar Film Festival, BFI e British Council, e baseia a sua investigação nestas experiências, encontrando formas de refletir sobre como o imperialismo se replica através de processos de trabalho institucionalizados, afetando as várias maneiras como nos relacionamos através da arte.

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