O cinema português é vasto e complexo. As continuidades e as ruturas políticas, estéticas e sociais da sua história são interessantes e produtivas. Quando pensamos na proposta que está explícita no programa da Seleção Nacional, pretendíamos responder a uma questão tão seminal como “o que é o cinema português?”, tentando provocar, desafiar, abrir e sugerir relações imprevisíveis e espontâneas. Nesse sentido, não nos interessa uma relação demasiado historicista ou pedagógica (no seu sentido mais simples) como resposta a essa pergunta. No cinema português cabem muitas coisas ao mesmo tempo.
Sobrepõem-se pensamentos díspares, evoluções e transformações nem sempre lineares. Queremos evitar qualquer cânone da história do cinema português, procurando antes leituras que sejam abertas, abrangentes, e, sobretudo, surpreendentes. Sabemos, aliás, esse cânone, que está estabelecido em algumas (boas) histórias do cinema português. Um cânone que também nos entusiasma, mas que já não nos permite ver mais além, no emaranhado confuso do tempo que passa.
Um dia, João Bénard da Costa – cujas memórias também criaram muitas mitologias – escreveu um texto sobre a história do cinema português, denominando-o de “Breve história mal contada de um cinema mal visto”. Apesar de, nas últimas duas décadas, o cinema português ter sido mais estudado – como, aliás, nunca tinha sido –, a ideia de que é um cinema mal visto persiste. Não nos preocupa tanto esclarecer as más interpretações ou julgamentos precipitados (em ambos os sentidos) sobre o cinema português. Importa-nos mais dar conta de como o cinema sempre foi (e será) um retrato da pulsação dos dias, das transformações das sociedades, da impossibilidade de inventar uma tradição. E interessa-nos que seja um cinema “mais” e “bem” visto, no sentido de se oferecer uma visão inicial destas obras – em sala, nos seus suportes originais (sempre que possível; se não, em restauros digitais) – e destacá-las da história, isto é, deixar que as obras nos comovam por si mesmas, pelas suas qualidades únicas, pelos seus defeitos estruturais (deficiências técnicas, problemas de produção), mas enquanto cinema que espera pelo espectador. O cinema português merece, como aqui, ser visto porque ele também fala de nós, enquanto comunidade que foi e enquanto comunidade por vir.
Assim, é mais importante provocar reações imprevisíveis à resposta esperada, que se vão organizar à volta de constelações de filmes, cujas ligações serão sugeridas por uma visão exterior, programática, e que implicará uma associação menos direta de uma cronologia simples da história do cinema português. Para nós, as respostas serão sempre subtis e provocadoramente ambíguas, precisamente para estimular novas leituras e novas associações. O nosso ponto de partida será sempre uma ideia - um tema, uma imagem, uma técnica, uma forma. Não queremos, portanto, privilegiar ou estabelecer um cânone.
Programamos constelações de filmes que possam construir dinâmicas inesperadas dentro de uma ideia. E queremos também sentir conforto com as escolhas: serão filmes que nos interessam, que nos seduzem com algum pormenor importante, com algo potente para dizer ou sentir. Talvez se procurem zonas menos exploradas do cinema português. Talvez sejam programados filmes menos vistos. Mas o nosso esforço é pela provocação de novas associações e, por isso, estes programas prometem relações de circunstância, quer pela ordem de projeção das sessões, quer pela sugestão de sessões que se complementam com longas e curtas-metragens. Não há géneros maiores ou menores; formatos de duração mais capazes. Neste programa de cinema português haverá sempre espaço para desafiar as nossas perceções – sejam elas de tempo, espaço, estilo, ou de relevância histórica.
Se um programa semanal de cinema português é, em si, uma celebração, nós queremos que ela não seja canónica, esperada, previsível. Só esperemos que as constelações preparadas para o primeiro ano do Batalha Centro de Cinema sejam elas mesmas o nosso cartão de visita; o nosso próprio cânone, que é tão discutível como qualquer outro. O que é mesmo o cinema português?
Constelação #3 — Brandos Costumes
Uma das ideias fundamentais que tem atravessado a historiografia do cinema português é que este parece sedimentar-se numa passividade e apatia, quer do ponto de vista narrativo, quer até numa construção melancólica da sua mise-en-scène. Se, por um lado, é reconhecível uma evidente composição cinemática a partir de elipses e não-ditos; por outro, há também muitos outros exemplos em que o cinema português foi violento, exibindo nas suas imagens e sons uma forma cruel, tando do ponto de vista da elaboração da história como de uma violência física e gráfica. Esse outro lado parece-nos também importante mostrar, porque subverte outras ideias mais inculcadas nas nossas representações culturais.
Por isso mesmo, esta constelação apresenta como título “Brandos Costumes”, porque nos parece que o cinema português — e a ideia dominante que temos dele — foi também alicerçada a partir desse senso comum sobre o que nos faz “portugueses”. O povo dos brandos costumes foi uma invenção da máquina de propaganda salazarista, que se disseminou estruturalmente por vários setores da sociedade, escondendo aquilo que a sociologia da história já revelou: a existência de uma violência inerente, que é, aliás, normal a qualquer sociedade. Mas não só esta violência nos interessou: há algo no conceito de “brandos costumes” que também normalizou comportamentos, construindo uma imagem de um país católico, familiar, rural, onde as ordens sociais eram claramente estratificadas e os papéis de género muito claros.
O cinema português, no entanto, abriu também as suas imagens e os seus sons para outras formas de viver, mostrando realidades que estavam escondidas pelo abrangente aparato ideológico. Por isso mesmo, esta constelação começa com dois filmes marcantes da história do cinema português. A Caça, de Manoel de Oliveira, é talvez o primeiro filme verdadeiramente moderno do nosso cinema, e no qual uma visão existencialista é mostrada ao lado de uma intrínseca visão violenta da vida em comunidade. É também sintomático que o regime tenha obrigado Oliveira a fazer um final feliz (a cópia a projetar inclui os dois finais). Por outro lado, Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos, produzido antes e depois da revolução (e só por isso não tendo sido censurado), clarifica, de uma forma brechtiana, os elementos essenciais da construção ideológica à volta da família e do pai como figura “exemplar” e dominadora de todas as relações de poder.
O que propomos, depois desta sessão inaugural, é atravessar diferentes momentos do cinema português — de 1970 a 2016 — e ouvir diferentes vozes que abordam um outro Portugal, onde a violência persiste como modo de sobrevivência, ou que outras formas de vida são propostas, anulando o ideal da família salazarista. A terra e a sua posse são elementos da segunda e terceira sessão, com filmes de Mariana Gaivão, João Mário Grilo e Fernando Lopes. São obras muito diferentes, mas nos seus espaços e com as suas personagens, questionam uma paisagem rural e as suas estruturas de domínio e poder. São também filmes sobre personagens solitários, para os quais o mundo desaba, também por força de uma violência explícita e brutal. A morte que abre O Fim do Mundo é paradigma disso: ali, no interior rural, uma questão de partilha de águas é motivo para um crime absurdo.
Dois filmes desta constelação reveem o passado (Nojo aos Cães e Dina e Django), evidenciando como a vida diária era violenta, rude, pobre. Por outro lado, filmes mais recentes — Setembro, Relatos de uma Rapariga Nada Púdica, Odete — atiram-nos aos nossos olhos um mundo que costuma não ser visto, o de outras formas de organização familiar, afetiva e subjetiva. Esta constelação não poderia existir sem um filme de João Pedro Rodrigues, precisamente um cineasta que rompeu o silêncio sobre as narrativas homoafetivas, mostrando como outras formas de vida e de desejo são possíveis. Também não seria possível esta constelação sem o trabalho de João Canijo, autor de um punhado de filmes onde a violência gráfica e narrativa nos interpela de forma intensa. Noite Escura — aqui na versão director’s cut, nunca vista — é desse cinema exemplo maior: uma família e a sua casa de alterne, lugar de violências várias — sexuais, familiares, psicológicas. Terminamos esta constelação com uma das primeiras obras mais fascinantes do cinema português: A Idade Maior, de Teresa Villaverde, filme que, a partir dos olhos de uma criança, observa a complexidade de um mundo estilhaçado pelos traumas da guerra e pelo desmoronamento das relações sociais e comunitárias. Um filme sobre o fim da ilusão dos brandos costumes.
Daniel Ribas
Investigador, programador e crítico de cinema, é Professor Auxiliar na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena o Mestrado em Cinema. É Diretor do CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de vários programas de filmes, nomeadamente para o Porto/Post/Doc, no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde IFF. Doutorado em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho, escreve sobre cinema português, cinema contemporâneo e experimental.
Paulo Cunha
Desenvolve trabalho em investigação, programação e crítica de cinema. É Professor Auxiliar na Universidade da Beira Interior, onde é Diretor do Mestrado em Cinema e Vice-Presidente do Departamento de Artes. É membro integrado do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e do INCT Rede Proprietas. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães. Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, escreve sobre cinema português, estudos decoloniais, crítica e cultura cinematográficas.
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