Constelação #2 — El Dorado
Daniel Ribas e Paulo Cunha
15 de Março de 2023

Seleção Nacional

por Daniel Ribas e Paulo Cunha


O cinema português é vasto e complexo. As continuidades e as ruturas políticas, estéticas e sociais da sua história são interessantes e produtivas. Quando pensamos na proposta que está explícita no programa da Seleção Nacional, pretendíamos responder a uma questão tão seminal como “o que é o cinema português?”, tentando provocar, desafiar, abrir e sugerir relações imprevisíveis e espontâneas. Nesse sentido, não nos interessa uma relação demasiado historicista ou pedagógica (no seu sentido mais simples) como resposta a essa pergunta. No cinema português cabem muitas coisas ao mesmo tempo.


Sobrepõem-se pensamentos díspares, evoluções e transformações nem sempre lineares. Queremos evitar qualquer cânone da história do cinema português, procurando antes leituras que sejam abertas, abrangentes, e, sobretudo, surpreendentes. Sabemos, aliás, esse cânone, que está estabelecido em algumas (boas) histórias do cinema português. Um cânone que também nos entusiasma, mas que já não nos permite ver mais além, no emaranhado confuso do tempo que passa.


Um dia, João Bénard da Costa – cujas memórias também criaram muitas mitologias – escreveu um texto sobre a história do cinema português, denominando-o de “Breve história mal contada de um cinema mal visto”. Apesar de, nas últimas duas décadas, o cinema português ter sido mais estudado – como, aliás, nunca tinha sido –, a ideia de que é um cinema mal visto persiste. Não nos preocupa tanto esclarecer as más interpretações ou julgamentos precipitados (em ambos os sentidos) sobre o cinema português. Importa-nos mais dar conta de como o cinema sempre foi (e será) um retrato da pulsação dos dias, das transformações das sociedades, da impossibilidade de inventar uma tradição. E interessa-nos que seja um cinema “mais” e “bem” visto, no sentido de se oferecer uma visão inicial destas obras – em sala, nos seus suportes originais (sempre que possível; se não, em restauros digitais) – e destacá-las da história, isto é, deixar que as obras nos comovam por si mesmas, pelas suas qualidades únicas, pelos seus defeitos estruturais (deficiências técnicas, problemas de produção), mas enquanto cinema que espera pelo espectador. O cinema português merece, como aqui, ser visto porque ele também fala de nós, enquanto comunidade que foi e enquanto comunidade por vir.


Assim, é mais importante provocar reações imprevisíveis à resposta esperada, que se vão organizar à volta de constelações de filmes, cujas ligações serão sugeridas por uma visão exterior, programática, e que implicará uma associação menos direta de uma cronologia simples da história do cinema português. Para nós, as respostas serão sempre subtis e provocadoramente ambíguas, precisamente para estimular novas leituras e novas associações. O nosso ponto de partida será sempre uma ideia - um tema, uma imagem, uma técnica, uma forma. Não queremos, portanto, privilegiar ou estabelecer um cânone.


Programamos constelações de filmes que possam construir dinâmicas inesperadas dentro de uma ideia. E queremos também sentir conforto com as escolhas: serão filmes que nos interessam, que nos seduzem com algum pormenor importante, com algo potente para dizer ou sentir. Talvez se procurem zonas menos exploradas do cinema português. Talvez sejam programados filmes menos vistos. Mas o nosso esforço é pela provocação de novas associações e, por isso, estes programas prometem relações de circunstância, quer pela ordem de projeção das sessões, quer pela sugestão de sessões que se complementam com longas e curtas-metragens. Não há géneros maiores ou menores; formatos de duração mais capazes. Neste programa de cinema português haverá sempre espaço para desafiar as nossas perceções – sejam elas de tempo, espaço, estilo, ou de relevância histórica.


Se um programa semanal de cinema português é, em si, uma celebração, nós queremos que ela não seja canónica, esperada, previsível. Só esperemos que as constelações preparadas para o primeiro ano do Batalha Centro de Cinema sejam elas mesmas o nosso cartão de visita; o nosso próprio cânone, que é tão discutível como qualquer outro. O que é mesmo o cinema português?


Constelação #2 — El Dorado

Descolonizar foi uma das transformações mais fraturantes anunciadas pela Revolução de Abril de 1974. Para além de Democratizar e Desenvolver, o país colocava-se perante um desafio estrutural que não tinha sequer sido proposto pelas principais revoluções políticas que Portugal tinha vivido na história recente, seja na Revolução Liberal de 1820 ou na Revolução Republicana de 1910. O mito do El Dorado foi alimentando o imaginário institucional e popular ao longo de vários séculos, tornando-se um eixo inquestionável dos sucessivos projetos estratégicos para Portugal desde a Tomada de Ceuta (1415), passando pela “descoberta” do Brasil (1500), até ao ambicioso Mapa Cor-de-rosa,

em 1890.

Perante tão estruturante fardo histórico, o processo de descolonização tem sido um dos temas transversais mais recorrentes no cinema português produzido no pós-25 de abril, com particular intensidade nas últimas duas décadas. A ferida colonial é mais visível nos territórios africanos do antigo império, sobretudo devido à violência das campanhas de “pacificação” (que, na realidade, foram de extermínio), na transição do séc. XIX para o séc. XX, e pela guerra colonial que precipitou a queda do fascismo.

Ao longo de oito sessões, propomos o visionamento de um conjunto de filmes que convidam a uma reflexão e um debate continuado acerca do processo colonial e decolonial que envolveu Portugal desde o Mapa Cor-de-rosa, e que ainda hoje reclama por uma enorme pertinência. Da curta à longa, do documental à ficção, passando pelo filme-ensaio, cinema militante, performático e meta-filme, o programa que aqui se propõe é variado, dando a conhecer olhares diversos e múltiplos, com narrativas e dramas que parecem estilhaçar as cronologias e geografias mais aparentes.

Recuperamos obras fundamentais anticoloniais, como Deixem-me ao menos subir às palmeiras, de Joaquim Lopes Barbosa, cineasta portuense recentemente falecido que fez carreira cinematográfica em Angola e Moçambique, Monangambeee, da artista e intelectual Sarah Maldoror, que apelava à morte do homem branco através da adaptação de um conto de Luandino Vieira, ou Catembe, obra de Faria de Almeida que foi impiedosamente mutilada pela censura fascista. Lembramos também reflexões transhistóricas e alegóricas surgidas do período revolucionário, como Os Demónios de Alcácer Quibir, de José Fonseca e Costa, Paraíso Perdido, de Alberto Seixas Santos, e Acto dos Feitos da Guiné, de Fernando Matos Silva. Visitamos a viragem para o século XX através de dois balanços feitos no feminino sobre pessoas reais em confronto com a memória colonial: Natal 71, de Margarida Cardoso, e Fato Completo ou à Procura de Alberto, de Inês de Medeiros. De gerações mais jovens, como João Salaviza, Welket Bungué, Filipa César, Carlos Conceição, Hugo Vieira da Silva e José Miguel Ribeiro, escolhemos algumas obras da última década que exploram questões da pós--memória em diversos aspetos da sua enorme complexidade, procurando sentir a reverberação de uma ferida colonial que teima em não cicatrizar. E terminamos a constelação com um filme icónico, que funcionará como um recomeço da própria constelação e uma transição para a seguinte: Um Adeus Português, de João Botelho, que, a partir de um poema de Alexandre O’Neill, nos apresenta, a dois tempos, um retrato de um trauma intergeracional a partir de uma família na Lisboa dos anos 1980 e as memórias míticas da guerra colonial.

A organização das próprias sessões permite ainda diálogos, por vezes aparentemente inesperados, outras vezes mais imediatos, entre as obras, os seus autores, os territórios em que decorrem e os períodos históricos em que foram produzidos. Mas a ordem das sessões também desenha uma trajetória de acumulação que potencia aproximações e relações entre situações, personagens ou espaços de diferentes filmes. É este o jogo proposto ao espectador para cada constelação, que ele próprio trace dinâmicas através de linhas imaginárias entre os filmes que a integram, ou mesmo com filmes das constelações anteriores.

Daniel Ribas

Investigador, programador e crítico de cinema, é Professor Auxiliar na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena o Mestrado em Cinema. É Diretor do CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de vários programas de filmes, nomeadamente para o Porto/Post/Doc, no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde IFF. Doutorado em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho, escreve sobre cinema português, cinema contemporâneo e experimental.



Paulo Cunha

Desenvolve trabalho em investigação, programação e crítica de cinema. É Professor Auxiliar na Universidade da Beira Interior, onde é Diretor do Mestrado em Cinema e Vice-Presidente do Departamento de Artes. É membro integrado do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e do INCT Rede Proprietas. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães. Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, escreve sobre cinema português, estudos decoloniais, crítica e cultura cinematográficas.

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