Constelação #1 — Antes do Futuro
Daniel Ribas e Paulo Cunha
14 de Dezembro de 2022

Seleção Nacional

por Daniel Ribas e Paulo Cunha


O cinema português é vasto e complexo. As continuidades e as ruturas políticas, estéticas e sociais da sua história são interessantes e produtivas. Quando pensamos na proposta que está explícita no programa da Seleção Nacional, pretendíamos responder a uma questão tão seminal como “o que é o cinema português?”, tentando provocar, desafiar, abrir e sugerir relações imprevisíveis e espontâneas. Nesse sentido, não nos interessa uma relação demasiado historicista ou pedagógica (no seu sentido mais simples) como resposta a essa pergunta. No cinema português cabem muitas coisas ao mesmo tempo.


Sobrepõem-se pensamentos díspares, evoluções e transformações nem sempre lineares. Queremos evitar qualquer cânone da história do cinema português, procurando antes leituras que sejam abertas, abrangentes, e, sobretudo, surpreendentes. Sabemos, aliás, esse cânone, que está estabelecido em algumas (boas) histórias do cinema português. Um cânone que também nos entusiasma, mas que já não nos permite ver mais além, no emaranhado confuso do tempo que passa.


Um dia, João Bénard da Costa – cujas memórias também criaram muitas mitologias – escreveu um texto sobre a história do cinema português, denominando-o de “Breve história mal contada de um cinema mal visto”. Apesar de, nas últimas duas décadas, o cinema português ter sido mais estudado – como, aliás, nunca tinha sido –, a ideia de que é um cinema mal visto persiste. Não nos preocupa tanto esclarecer as más interpretações ou julgamentos precipitados (em ambos os sentidos) sobre o cinema português. Importa-nos mais dar conta de como o cinema sempre foi (e será) um retrato da pulsação dos dias, das transformações das sociedades, da impossibilidade de inventar uma tradição. E interessa-nos que seja um cinema “mais” e “bem” visto, no sentido de se oferecer uma visão inicial destas obras – em sala, nos seus suportes originais (sempre que possível; se não, em restauros digitais) – e destacá-las da história, isto é, deixar que as obras nos comovam por si mesmas, pelas suas qualidades únicas, pelos seus defeitos estruturais (deficiências técnicas, problemas de produção), mas enquanto cinema que espera pelo espectador. O cinema português merece, como aqui, ser visto porque ele também fala de nós, enquanto comunidade que foi e enquanto comunidade por vir.


Assim, é mais importante provocar reações imprevisíveis à resposta esperada, que se vão organizar à volta de constelações de filmes, cujas ligações serão sugeridas por uma visão exterior, programática, e que implicará uma associação menos direta de uma cronologia simples da história do cinema português. Para nós, as respostas serão sempre subtis e provocadoramente ambíguas, precisamente para estimular novas leituras e novas associações. O nosso ponto de partida será sempre uma ideia - um tema, uma imagem, uma técnica, uma forma. Não queremos, portanto, privilegiar ou estabelecer um cânone.


Programamos constelações de filmes que possam construir dinâmicas inesperadas dentro de uma ideia. E queremos também sentir conforto com as escolhas: serão filmes que nos interessam, que nos seduzem com algum pormenor importante, com algo potente para dizer ou sentir. Talvez se procurem zonas menos exploradas do cinema português. Talvez sejam programados filmes menos vistos. Mas o nosso esforço é pela provocação de novas associações e, por isso, estes programas prometem relações de circunstância, quer pela ordem de projeção das sessões, quer pela sugestão de sessões que se complementam com longas e curtas-metragens. Não há géneros maiores ou menores; formatos de duração mais capazes. Neste programa de cinema português haverá sempre espaço para desafiar as nossas perceções – sejam elas de tempo, espaço, estilo, ou de relevância histórica.


Se um programa semanal de cinema português é, em si, uma celebração, nós queremos que ela não seja canónica, esperada, previsível. Só esperemos que as constelações preparadas para o primeiro ano do Batalha Centro de Cinema sejam elas mesmas o nosso cartão de visita; o nosso próprio cânone, que é tão discutível como qualquer outro. O que é mesmo o cinema português?



Constelação #1

Antes do Futuro

Durante as décadas de 1980 e 1990, o cinema português passou por profundas transformações. Mas não foi apenas o cinema português: a sociedade como um todo também se movimentou, instigada por um desejo de futuro, tanto desconhecido como promissor, e perseguida por um passado, sobretudo traumático. Em vários filmes portugueses desse período, esse movimento foi um passo para uma espécie de deambulação – entre o desespero e a solidão; entre uma promessa e uma desilusão. Esse movimento está expresso nas viagens (físicas e interiores) que diversas personagens fazem; naquilo que elas procuram dentro e fora de si. Está também expresso nos tracking shots que povoam muitos destes filmes; ou nas elipses bruscas que nos fazem oscilar entre um passado (guerra colonial; A ditadura; opressão) e um futuro (as estradas, a Europa, o dinheiro, a promessa de felicidade). Fazem até sentir-se no som: de um avião, de um carro, do comboio, do vento.


A modernidade, que sempre foi uma espécie de pano de fundo do cinema português, pelo menos desde que Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, abriu uma cratera na relação do cinema com a sociedade. Nesse filme, Júlio e Ilda sonhavam passar o fim de semana a visitar o aeroporto, e é ao som faiscante de um avião que eles namoram, sem perceber qual poderia ser o seu futuro. Muito passou desde o advento do novo cinema português até aos promissores anos da democratização da sociedade portuguesa. A liberdade estava a passar por aqui.


Mas se a liberdade, de facto, motivou uma nova forma de viver – com a explosão das novas formas de explorar o corpo, o desejo e a noite –, ela também abriu um fosso entre gerações: um fosso que expunha um trauma latente da sociedade portuguesa, que autores como Eduardo Lourenço exemplarmente diagnosticaram, ao se referirem à ausência de trauma com a revolução de Abril e a uma espécie de recalcamento.


Ao cinema português restava explorar novos caminhos – caminhos esses alternativos aos pais fundadores do novo cinema português, com Manoel de Oliveira à cabeça, e com Paulo Rocha, Fernando Lopes, António de Macedo, João César Monteiro ou José Fonseca e Costa como figuras cimeiras. Por isso, esta primeira constelação explora também um futuro sem pai, que se torna evidente nas narrativas sobre família que quase todos estes filmes exploram; ou onde as personagens mais jovens – que são omnipresentes nestes filmes – se sentem abandonadas no mundo difícil e que as põe sistematicamente à prova.


Começamos com a figura enigmática de Glória, uma miúda que sobrevive a um mundo adverso e masculino. A assombração parental e patriarcal é também uma marca destes filmes, e da mulher como personagem perigosa e frágil, numa contaminação com as violências subliminares a que é sujeita. Muitos destes filmes têm como personagens principais adolescentes ou jovens adultos que procuram um lugar no mundo, que os hostiliza ou que não os entende. Por isso, eles aprendem a “respirar debaixo d’água”, arriscam a cortar o cabelo ou sonham com Nova Iorque através de posters gigantes, imersos na alegria contagiante da infância e da adolescência, lutando contra as figuras de poder – os pais, os padrastos, etc. – que continuamente os afastam ou castram a sua liberdade. Querem ser outros, viver outras vidas. Por isso, estas personagens “em transição”, que se colocam em rituais de iniciação ferozes, são também uma metáfora da transição de Portugal e da sua geografia cultural e afetiva. De um império mundial, à pacatez de um pequeno jardim no extremo ocidental da Europa.


É também por isto que a dialética entre o campo e a cidade continua a persistir nestes filmes, porque é nessa viagem (campo-cidade; cidade-campo), que se faz o nosso imaginário coletivo. A maior parte das vezes, as personagens querem fugir às comunidades mais pequenas, claustrofóbicas, mas são rejeitadas quando chegam à cidade, que não as entende. Quase parece que o cinema português repete os seus “verdes anos” vezes sem conta. Muitas vezes de comboio – que um dia haveria de acabar –, as personagens sonham o mundo com a viagem e ouvem-na nos carris trepidantes. A face destas personagens, cabelo ao vento, é um sinal do ar fresco de que precisam, e com o qual querem aprender a viver. Pode o cinema português habitar a cidade? Entrar depressa nessa noite escura, para procurar a salvação? Antes do futuro, questionamos o que nos impele para a frente ou nos obriga a parar.


Quisemos, precisamente, começar as sessões desta Seleção Nacional com um grupo de filmes que nos desafia a entender a diversidade dos códigos narrativos e estéticos do cinema português. Fugimos do cânone para nos aproximarmos de delicadas aventuras em busca do futuro. Por isso mesmo, acabamos esta primeira constelação com um filme que encena o fim do mundo, afetivamente, dançando e bebendo, propondo um espetáculo de celebração da vida.

Daniel Ribas

Investigador, programador e crítico de cinema, é Professor Auxiliar na Escola de Artes da Universidade Católica Portuguesa, onde coordena o Mestrado em Cinema. É Diretor do CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes. Foi curador de vários programas de filmes, nomeadamente para o Porto/Post/Doc, no qual foi membro da Direção Artística entre 2016 e 2018. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde IFF. Doutorado em Estudos Culturais pelas Universidades de Aveiro e Minho, escreve sobre cinema português, cinema contemporâneo e experimental.



Paulo Cunha

Desenvolve trabalho em investigação, programação e crítica de cinema. É Professor Auxiliar na Universidade da Beira Interior, onde é Diretor do Mestrado em Cinema e Vice-Presidente do Departamento de Artes. É membro integrado do LabCom – Comunicação e Artes e colaborador do CEIS20 – Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra e do INCT Rede Proprietas. É atualmente programador do Curtas Vila do Conde e do Cineclube de Guimarães. Doutor em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, escreve sobre cinema português, estudos decoloniais, crítica e cultura cinematográficas.

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