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Maliglutit, Zacharias Kunuk
Maria João Castro
11 de Março de 2023

Uma liturgia inuíte

Maliglutit (Searchers, 2016), realizado por Zacharias Kunuk em parceria com Natar Ungalaaq, revisita a obra-prima de John Ford, The Searchers (1956), numa perspectiva inuíte, povo autóctone das regiões do Árctico, a que o realizador pertence. O filme apenas tem actores inuítes, tal como a maioria da equipa técnica, é todo falado em inuíte e foi filmado na pequena comunidade de Igloolik, no Norte do Canadá.

Maliglutit inspira-se num western clássico, género ligado à narrativa mítica do expansionismo americano e de uma fronteira sempre por achar para os colonizadores europeus. Os povos autóctones, os “índios”, que resistiam à conquista da sua terra eram vistos como hostis aos esforços civilizadores dos colonos e eram retratados no cinema clássico americano como “selvagens”, apesar de pequenas nuances.

Em The Searchers, Ford inscreve o enredo principal numa violenta dinâmica racial entre os comanches e os colonos brancos. Estávamos à espera de uma espécie de justiça poética que invertesse a visão racista e colonialista do western americano? Kunuk não faz qualquer ajuste de contas com a História e não opta pela descolonização da memória histórica. O filme passa-se sempre no seio de uma pequena comunidade de caçadores inuítes. Quando regressa da caça, com o filho mais velho, Kuanana depara-se com parte da família assassinada e a mulher e a filha raptadas. Os criminosos são outros caçadores inuítes, anteriormente expulsos por não partilharem a comida e dormirem com as mulheres alheias.

Situando-se o filme em 1913, período em que se intensificaram os contactos entre os brancos e os inuítes, pode parecer estranha a opção da ausência física daqueles, mas Kunuk não os esquece e a sua presença é subtil, através de utensílios determinantes para o quotidiano dos inuítes e para a acção, como os objectos de cozinha, as armas de fogo e, sobretudo, o telescópio, cujo ângulo de visão é muitas vezes assumido pela câmara do realizador. A relação óbvia com o filme de Ford faz-se através do enredo, a história de vingança e busca das mulheres raptadas, mas o objectivo de Kunuk é construir uma cinematografia identitária. Como num documentário filma-se o quotidiano inuíte em que as suas práticas são enquadradas em longos planos que mostram uma paisagem de assombro, a da tundra gelada do árctico canadiano. Há, aliás, um confronto entre os espaços humanos exíguos e claustrofóbicos, em que dentro dos iglus os corpos mal se conseguem mexer à volta da única fonte de calor presente no filme, e a imensa paisagem branca, majestática e sobrenatural, onde reside a verdadeira essência dos inuítes. Podemos vê-lo como um filme quase religioso na forma como se ligam profano e sagrado, e o papel da fotografia de Jonathan Frantz é essencial ao reforçar a ideia de que a sobrevivência humana depende da natureza, brutalmente bela, inóspita e castigadora. A natureza é crucial na vingança. As montanhas de gelo e o frio glaciar proclamam o não-perdão para os criminosos. Os corpos ficam literalmente congelados, as barbas revestem-se de gelo, a respiração cristaliza-se, os corpos envolvidos em peles movimentam-se com dificuldade e não há esconderijo possível. É uma liturgia à natureza e a um povo que se mesclou com ela, e é isso que a belíssima banda sonora celebra através dos cânticos guturais e ritualísticos, escritos e interpretados por Tanya Tagaq, presentes desde a primeira cena. Apelos a que o sagrado ajude Kuanana, quer na caça, quer na vingança, e isso está também simbolizado no pequeno totem de um deus inuíte que o protagonista leva consigo.

Na comparação com The Searchers, podemos desiludirmo-nos com a forma simplista como as personagens são retratadas. No western americano o foco é o protagonista, Ethan Edwards, um atormentado veterano de guerra sulista, de passado obscuro e que surge subitamente do deserto para visitar o irmão. Tudo é tenso, cheio de subentendidos. A sua busca pela sobrinha raptada pelos comanches é ambígua nas intenções e o seu racismo torna-se declarado quando admite que a pretende matar, porque, depois dos vários anos que durou a perseguição, ela já era uma “deles”, conspurcada pelos índios. Conhecemos o fim, o herói redime-se salvando a sobrinha e entregando-a a um novo lar de colonos brancos. A busca de Ethan foi também pela sua própria alma, mas este herói imperfeito está condenado à solidão e não tem lugar no lar novamente reconstituído e, na cena mais icónica do filme, a porta da casa fecha-se para ele, que parte acompanhado pelos versos da canção “Ride Away”: “A man will search his heart and soul/Go searching way out there”.

Em Maliglutit o protagonista não tem ambiguidades e, consumada a vingança, Kuanana pode reunir a família restante e juntos entrarem no iglu. Ele ficará dentro de portas.

A concepção individualista, tão importante para o cinema americano clássico, sobretudo quando existe a redenção do protagonista, é aqui menosprezada a favor de uma cinematografia que celebra uma natureza imponente e a comunidade cuja existência é determinada por ela. Talvez por isso predomine o silêncio em grande parte do filme, e os sons sejam os dos animais e dos humanos em esforço titânico para sobreviver nesta natureza cruel.

Assistimos a um western? Sim, no sentido da luta constante com uma natureza de possibilidades ilimitadas por parte de uma comunidade que vive de forma simples. Troquem os cavalos pelos trenós de cães e o deserto pela tundra gelada do Árctico e podemos falar de um “northern inuíte”.


A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.

Maria João Castro

Professora da ESMAE, Maria João Castro leciona as cadeiras de História da Cultura, do Teatro e do Cinema, Pensamento Político Contemporâneo, e Cultura e Ideologia. Mestre e doutoranda em História Política Contemporânea pela FLUP, é investigadora do CITCEM nas áreas da História da Cultura e do Pensamento Político Contemporâneo. É deputada na Assembleia da República, e dirigente e autarca do Partido Socialista no Porto. Desde 2020 que integra a Direção da Associação Amigos do Coliseu do Porto, entidade gestora do Coliseu do Porto.

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