Se o Cinema é uma Arma
Fradique, Janaína Oliveira, Manuela Matos Monteiro e Rita Morais
16 de Março de 2024

Magia, inspiração, registo, testemunho, luta. Desde sua criação, o cinema assume papéis variados em relação ao mundo, esbatendo as linhas entre o sonho e a realidade, entre a arte e a vida. Independentemente de como são percebidas, a potência transformadora das imagens em movimento é inquestionável. E é esta mesma potência que faz com que, com frequência, o cinema seja tomado como uma ferramenta ou gesto de ação, como uma arma. Tal dimensão, de abertura e de incitação à transformação, é também a premissa que orienta a proposta curatorial de Se o Cinema é uma Arma, que simultaneamente reitera e tensiona as múltiplas possibilidades desta afirmação.


Se o Cinema é uma Arma, de que forma o é? E de que formas o é hoje? Quais as possibilidades formais e discursivas assumidas, exercitadas e experimentadas pelos vários cinemas na contemporaneidade que nos permitem refletir sobre a anunciada potência transformadora do cinema? Se o cinema é — como historicamente foi — uma ferramenta tanto de testemunho, registo e memória como de intervenção, como se conjura hoje esta relação entre cinema e resistência, entre cinema e vida? O programa parte de um convite do Batalha Centro de Cinema, que lança o título do ciclo como estímulo a uma reflexão sobre os 50 anos da Revolução de Abril em diálogo próximo com o presente e com o mundo.


Por isso, o ciclo alimenta-se ainda de reflexões sobre um alargado conjunto de valores propostos por Abril, pensando-os na sua atualização, ativação e, também, falências, bem como no seu eco no mundo. Selecionam-se filmes que tratam de indagar sobre os limites impostos pelos conceitos de fronteira e identidade ocidentais, desafiando os pactos de silêncio forjados política e socialmente em sociedades que buscam renascer após regimes colonialistas, nacionalistas e fascistas. Daqueles ventos da revolução e da abertura que propuseram a um país outrora enclausurado ao mundo, no seu regime colonial e fascista, o que ficou, o que se ativou, o que foi deixado de fora, o que corre risco? Alguns valores de Abril desvaneceram numa sociedade portuguesa que, agarrada a um mito de Estado-nação, negligenciou lutas fundamentais que pautaram a luta de outrora, deixando para trás na sociedade contemporânea o desenvolvimento de temas centrais como feminismo, antiracismo, anticolonialismo, ambiente e solidariedade com os povos oprimidos do mundo.


Partimos desses ventos da Revolução e dos valores de Abril para abraçarmos neste ciclo a memória, a terra e diversas lutas sociais com uma perspetiva ampla e sempre centrada na possibilidade de articular diferentes visões estéticas, contextos, períodos e territórios. De uma escola no Porto a outra no Ceará, passando por um panorama musical e épico do colonialismo nas Caraíbas com West Indies, clássico absoluto do cineasta mauritano Med Hondo, exploram-se também visões do presente e futuro no Brasil contemporâneo ou ecos de colonialismo e ditadura no Chile. Sublinha-se o confronto de gerações e ideias nas movimentadas ruas de Hong Kong, e ainda os debates fervorosos de um clube de cinema numa universidade na Nigéria, no meio de uma crise de alojamento estudantil e da explosão de casos de violência policial nigeriana. Este é um ciclo que celebra e lembra o inigualável poder de intervenção e transformação que o cinema possui.


O programa conta ainda com duas sessões de curtas-metragens. Em Memórias Sem Rendição, o cinema poético emerge como uma poderosa arma contra o silêncio, revelando a fragilidade da memória. Em sociedades marcadas por ditaduras, guerras, escravatura, as obras de Lawrence Abu Hamdan, João Vieira Torres e Tiffany Sia oferecem à linha da frente perspetivas estéticas transformadoras, explorando os arquivos de forma expandida. Esses cineastas abraçam a dualidade do cinema como uma ferramenta de resistência e cura, desafiando o presente e instigando reflexões profundas pessoais sobre a transformação da história.


Já na sessão Visões Palestinas, as obras de Larissa Sansour e Jumana Manna encontram-se em fabulações ao mesmo tempo históricas e futuristas fornecendo perspetivas aguçadas sobre um tema cuja urgência traz para a curadoria a reverberação mundial que pede pelo de cessar-fogo imediato e o fim do genocídio perpetrado em Gaza.


Nesta mesma dimensão crítica, a sessão-performance Code Names, de Maryam Tafakory, conjuga uma série de filmes da realizadora iraniana com uma leitura-performance que sempre e a cada vez é atualizada. Maryam recorre ao arquivo do cinema iraniano produzido após a revolução de 1979 para refletir sobre relevantes questões contemporâneas, nomeadamente aquelas relacionadas com a mulher, a violência ou a censura. Porém, a potência da obra de Tafakory reside numa conjuração vital entre o político e o poético, o manifesto e o íntimo, enformada por uma recontextualização do próprio cinema, num jogo entre o visível e o invisível, o oculto e o que nos é velado e cuja maior expressão é justamente o caráter efémero desta performance.

Fradique

Cineasta angolano, residente em Berlim. Realizador e guionista de "Independência" (2015) e "Ar Condicionado" (2020). Os seus filmes mergulham em mundos distópicos, explorando temas como a memória, o luto e a justiça social. É membro da Science New Wave e da Film Independent. Enquanto curador de cinema, atualmente integra o comité da secção Panorama da Berlinale e do Festival de Cinema Africano de Colónia. Em 2023, recebeu a bolsa SFFILM Sloan Science in Cinema Fellowship e está a desenvolver o seu novo longa-metragem “Segura Para Mim o Tempo”.


Janaína Oliveira

Pesquisadora e curadora de cinema. Professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e consultora da JustFilms - Fundação Ford. É doutora em História e foi Fulbright Visiting Scholar no Centro n a Universidade Howard nos EUA. Desde 2009, desenvolve pesquisas  e realiza curadorias em cinema trabalhando também como consultora, júri e conferencista em vários festivais de cinema e instituições no Brasil e no exterior. Atualmente, além de participar de outras iniciativas curatoriais, integra o Comitê de Seleção do BlackStar Film Festival, o conselho consultivo do Doc's Kingdom e conselho curatorial do Criterion Channel.


Manuela Matos Monteiro

Foi professora e é autora e coautora de livros de psicologia, psicossociologia, pedagogia e metodologia de projeto. Coordenou o site NETPROF - Clube dos Professores Portugueses e dirigiu a revista 2:PONTOS. Desenvolve desde a década de 70 trabalho fotográfico tendo o seu trabalho sido reconhecido em exposições e concursos nacionais e internacionais. Tem sido júri de concursos/festivais de fotografia e vídeo. Dirige desde 2013, com J. Lafuente, as galerias MIRA FORUM, Espaço MIRA e, desde abril de 2017 a galeria MIRA | artes performativas. Para além do trabalho autoral na área da fotografia, é curadora de várias exposições realizadas no MIRA e fora da estrutura. É curadora com João Lafuente da Bienal de Fotografia de Lamego e Vale do Varosa.


Rita Morais

Realizadora e programadora. Mestre pelo Artists’ Film & Moving Image MA, na Goldsmiths, University of London, é membro da Cooperativa Laia, estrutura de apoio à criação artística, e do Laboratório da Torre, laboratório de cinema analógico gerido por artistas na cidade do Porto. Co-dirige a Miragem - arte cinemática na paisagem, na ilha do Pico, Açores. Os seus trabalhos têm sido exibidos nacional e internacionalmente em espaços e festivais como o Open City Docs (Londres, UK); Berwick Film & Media Arts Festival (Berwick, UK) Rockaway IFF (Nova Iorque, EUA), S8 - Mostra de Cinema Periferico (A Coruña, ES), SIM Gallery (Reykjavik, IS), A.P.T. Gallery (Londres, UK), entre outros.

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