Os primeiros minutos de Salt of This Sea mostram imagens de arquivo da expulsão dos palestinianos do porto de Jaffa em 1948: explosões violentas, demolição de casas por tanques israelitas, famílias que fogem em barcos sobrelotados rumo à vida no exílio. Das imagens históricas da Nakba, a preto-e-branco, a câmara de Annemarie Jacir desloca o nosso olhar para o azul do Mediterrâneo no presente. Nakba em árabe significa catástrofe, e a palavra refere-se ao conflito israelo-palestiniano de 1947–1949, que se seguiu à retirada dos britânicos da Palestina e ao plano das Nações Unidas de criar um Estado judeu e um Estado árabe.
A primeira longa-metragem de Jacir é uma narrativa ficcional de vozes que reclamam o direito de regressar a casa. É também uma história feminista contada sob o ponto de vista da personagem principal, Soraya, uma jovem de origem palestiniana nascida em Brooklyn que visita a terra dos seus pais e avós pela primeira vez. No aeroporto Ben-Gurion, Soraya é submetida a um interrogatório e revistada pelas autoridades fronteiriças israelitas, que questionam as suas origens familiares e o objetivo da visita.
Chegada à cidade de Ramallah, na Cisjordânia, Soraya descobre um lugar que lhe parece extraordinariamente familiar. Determinada a estabelecer-se na Palestina e reaver o dinheiro do avô cujas poupanças foram congeladas aquando do seu exílio em 1948, é confrontada com a impossibilidade de recuperar uma conta confiscada ao dirigir-se ao Banco Britânico da Palestina. Em deambulações pela cidade conhece Emad, empregado de mesa num restaurante local com quem desenvolve uma forte ligação. Durante um longo passeio juntos em que o mar se avista no horizonte distante, Soraya recorda melancolicamente as histórias do avô, sobre o café Al Madfa, o cinema Hamra, a biblioteca, o prazer de nadar no mar e as laranjas de Jaffa. Tal como se fossem suas, ela reconta estas memórias como parte de uma experiência de vida. O que significa chamar “casa” a um lugar que nunca visitou?
Salt of This Sea é também um road movie. Entrelaçando ficção, realidade e fantasia, as três personagens (Soraya, Emad e o seu amigo Marwan) partem estrada fora numa viagem que desafia as regras impostas pelas fronteiras, os postos de controlo, a vigilância apertada e a intimidação policial. Sabendo que o fim da viagem é inevitável face às restrições impostas por Israel à liberdade de circulação dos palestinianos, dirigem-se a Jaffa em busca da casa da família de Soraya, e com vista a assaltar um banco para reaver as poupanças do avô. A câmara capta a profundidade com que o trauma habita um corpo, o modo como desencadeia respostas físicas, e a passagem entre gerações de um trauma coletivo. Confrontada com a sua perda, Soraya sente raiva e dor, que é também a de todos os palestinianos. Recusa aceitar o facto de que a casa da sua família seja agora propriedade de uma mulher israelita que os convida a ficar. De regresso à estrada, Soraya e Emad sonham com uma vida entre as ruínas de Al-Dawayma, aldeia tragicamente marcada pelo massacre de 1948. Histórias passadas e presentes cruzam-se, tornando insuportável aceitar a violência da situação atual — a Nakba ainda não terminou.
No último plano do filme, na zona de embarque do aeroporto, o movimento lento e repetitivo das portas automáticas recorda uma frase frequentemente vista nos aeroportos: “no return beyond this point”. Contudo, aqui, “sem retorno” carrega o peso opressivo da desapropriação. Ao escrever sobre Salt of This Sea, a curadora de cinema Rasha Salti pergunta: “E se regressássemos a casa nos nossos próprios termos? A casa onde era suposto estar, e não as novas casas negociadas em acordos sinistros entre chefes de Estado que nunca sentiram a humilhação da falta de casa.” O filme de Jacir reivindica o direito de imaginar sem medo, defende.
Tendo estudado cinema na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e enquanto cofundadora de Dreams of a Nation Palestinian Cinema Project, Jacir está ativamente empenhada em apoiar o cinema palestiniano e as lutas pela autodeterminação nacional. Inúmeras vozes questionam a ética da criação de um Estado judeu que obrigou milhares de palestinianos a abandonar as suas casas. No entanto, é importante sublinhar de que o regresso é uma condição para a estabilidade — algo que as explosões de violência recentes parecem ameaçar. Peter Beinart, professor de Jornalismo e Ciência Política, afirma: “os líderes judeus insistem que, para alcançar a paz, os palestinianos têm de esquecer a Nakba. Mas é mais correto dizer que a paz virá quando os judeus se lembrarem. Quanto melhor nos lembrarmos porque é que os palestinianos partiram, melhor compreenderemos porque é que eles merecem a oportunidade de regressar”.
O cinema de Annemarie Jacir trabalha contra o apagamento da história para revelar os efeitos fraturantes da guerra, da ocupação e do exílio nas vidas daqueles que direta ou indiretamente são afetados. Nos créditos finais de Salt of This Sea, lê-se a seguinte frase: “Em memória da Nakba e, em particular, do massacre de Dawayima.” Como escreveu em tempos a escritora Jean Fisher, “quem ocupa pode apoderar-se de um território mas não pode ocupar um poema ou uma obra de arte; pode apenas tentar silenciá-los”.
Sofia Victorino
Bolseira da FCT no Doutoramento em História Contemporânea da FCSH, Sofia Victorino possui um mestrado em Contemporary Cultural Processes, pela Goldsmiths (Londres). Entre 2011 e 2021 foi Diretora de Educação e Programas Públicos na Whitechapel Gallery (Londres), assumindo funções ao nível da programação artística e curadoria. Anteriormente, foi Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves (2002–2011). Leciona no mestrado Curating Art and Public Programmes, da London South Bank University e integra o Conselho Consultivo da coleção Documents of Contemporary Art, coeditada pela Whitechapel Gallery e pela MIT Press.
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