Annemarie Jacir: Salt of This Sea + Like Twenty Impossibles
Sofia Victorino
22 de Junho de 2023

Os primeiros minutos de Salt of This Sea mostram imagens de arquivo da expulsão dos palestinianos do porto de Jaffa em 1948: explosões violentas, demolição de casas por tanques israelitas, famílias que fogem em barcos sobrelotados rumo à vida no exílio. Das imagens históricas da Nakba, a preto-e-branco, a câmara de Annemarie Jacir desloca o nosso olhar para o azul do Mediterrâneo no presente. Nakba em árabe significa catástrofe, e a palavra refere-se ao conflito israelo-palestiniano de 1947–1949, que se seguiu à retirada dos britânicos da Palestina e ao plano das Nações Unidas de criar um Estado judeu e um Estado árabe.

A primeira longa-metragem de Jacir é uma narrativa ficcional de vozes que reclamam o direito de regressar a casa. É também uma história feminista contada sob o ponto de vista da personagem principal, Soraya, uma jovem de origem palestiniana nascida em Brooklyn que visita a terra dos seus pais e avós pela primeira vez. No aeroporto Ben-Gurion, Soraya é submetida a um interrogatório e revistada pelas autoridades fronteiriças israelitas, que questionam as suas origens familiares e o objetivo da visita.

Chegada à cidade de Ramallah, na Cisjordânia, Soraya descobre um lugar que lhe parece extraordinariamente familiar. Determinada a estabelecer-se na Palestina e reaver o dinheiro do avô cujas poupanças foram congeladas aquando do seu exílio em 1948, é confrontada com a impossibilidade de recuperar uma conta confiscada ao dirigir-se ao Banco Britânico da Palestina. Em deambulações pela cidade conhece Emad, empregado de mesa num restaurante local com quem desenvolve uma forte ligação. Durante um longo passeio juntos em que o mar se avista no horizonte distante, Soraya recorda melancolicamente as histórias do avô, sobre o café Al Madfa, o cinema Hamra, a biblioteca, o prazer de nadar no mar e as laranjas de Jaffa. Tal como se fossem suas, ela reconta estas memórias como parte de uma experiência de vida. O que significa chamar “casa” a um lugar que nunca visitou?

Salt of This Sea é também um road movie. Entrelaçando ficção, realidade e fantasia, as três personagens (Soraya, Emad e o seu amigo Marwan) partem estrada fora numa viagem que desafia as regras impostas pelas fronteiras, os postos de controlo, a vigilância apertada e a intimidação policial. Sabendo que o fim da viagem é inevitável face às restrições impostas por Israel à liberdade de circulação dos palestinianos, dirigem-se a Jaffa em busca da casa da família de Soraya, e com vista a assaltar um banco para reaver as poupanças do avô. A câmara capta a profundidade com que o trauma habita um corpo, o modo como desencadeia respostas físicas, e a passagem entre gerações de um trauma coletivo. Confrontada com a sua perda, Soraya sente raiva e dor, que é também a de todos os palestinianos. Recusa aceitar o facto de que a casa da sua família seja agora propriedade de uma mulher israelita que os convida a ficar. De regresso à estrada, Soraya e Emad sonham com uma vida entre as ruínas de Al-Dawayma, aldeia tragicamente marcada pelo massacre de 1948. Histórias passadas e presentes cruzam-se, tornando insuportável aceitar a violência da situação atual — a Nakba ainda não terminou.

No último plano do filme, na zona de embarque do aeroporto, o movimento lento e repetitivo das portas automáticas recorda uma frase frequentemente vista nos aeroportos: “no return beyond this point”. Contudo, aqui, “sem retorno” carrega o peso opressivo da desapropriação. Ao escrever sobre Salt of This Sea, a curadora de cinema Rasha Salti pergunta: “E se regressássemos a casa nos nossos próprios termos? A casa onde era suposto estar, e não as novas casas negociadas em acordos sinistros entre chefes de Estado que nunca sentiram a humilhação da falta de casa.” O filme de Jacir reivindica o direito de imaginar sem medo, defende.

Tendo estudado cinema na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, e enquanto cofundadora de Dreams of a Nation Palestinian Cinema Project, Jacir está ativamente empenhada em apoiar o cinema palestiniano e as lutas pela autodeterminação nacional. Inúmeras vozes questionam a ética da criação de um Estado judeu que obrigou milhares de palestinianos a abandonar as suas casas. No entanto, é importante sublinhar de que o regresso é uma condição para a estabilidade — algo que as explosões de violência recentes parecem ameaçar. Peter Beinart, professor de Jornalismo e Ciência Política, afirma: “os líderes judeus insistem que, para alcançar a paz, os palestinianos têm de esquecer a Nakba. Mas é mais correto dizer que a paz virá quando os judeus se lembrarem. Quanto melhor nos lembrarmos porque é que os palestinianos partiram, melhor compreenderemos porque é que eles merecem a oportunidade de regressar”.

O cinema de Annemarie Jacir trabalha contra o apagamento da história para revelar os efeitos fraturantes da guerra, da ocupação e do exílio nas vidas daqueles que direta ou indiretamente são afetados. Nos créditos finais de Salt of This Sea, lê-se a seguinte frase: “Em memória da Nakba e, em particular, do massacre de Dawayima.” Como escreveu em tempos a escritora Jean Fisher, “quem ocupa pode apoderar-se de um território mas não pode ocupar um poema ou uma obra de arte; pode apenas tentar silenciá-los”.

Sofia Victorino

Bolseira da FCT no Doutoramento em História Contemporânea da FCSH, Sofia Victorino possui um mestrado em Contemporary Cultural Processes, pela Goldsmiths (Londres). Entre 2011 e 2021 foi Diretora de Educação e Programas Públicos na Whitechapel Gallery (Londres), assumindo funções ao nível da programação artística e curadoria. Anteriormente, foi Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves (2002–2011). Leciona no mestrado Curating Art and Public Programmes, da London South Bank University e integra o Conselho Consultivo da coleção Documents of Contemporary Art, coeditada pela Whitechapel Gallery e pela MIT Press.

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