Risky Business
Giovanni Marchini Camia
20 de Julho de 2024

Chicago, anos 80. Um finalista do secundário, interpretado por um ídolo adolescente em ascensão, decide libertar-se das exigências opressoras da sua educação suburbana perfeita e embarca com os seus amigos numa série desenfreada de disparates. Entre outras coisas, acabam por destruir o vistoso carro europeu desportivo do pai de um dos personagens, símbolo do seu estatuto de classe e ambição. Importantes lições de vida acabam por ser aprendidas e os jovens, sem terem de enfrentar quaisquer consequências das suas ações, regressam em segurança aos seus caminhos prescritos em direção a um futuro de sucesso.

A sinopse acima poderia igualmente descrever duas diferentes e icónicas comédias de Hollywood sobre adolescentes: Risky Business (1983), de Paul Brickman, e Ferris Bueller’s Day Off (1986), de John Hughes. Ao assistirmos hoje a estes clássicos, é surpreendente constatar que a estreia de Brickman, que escreveu e realizou o filme, tenha acontecido antes de Ferris Bueller. O primeiro parece agora uma sátira mordaz a este último, um lado sombrio do conto de fadas de Hughes no período de Reagan. A presciência de Brickman é tanto mais extraordinária se considerarmos que Risky Business estreou apenas no segundo dos oito anos da administração Reagan, ainda que já retratasse de forma confiante os valores que viriam a definir a era e a conduzir a política e a cultura dos Estados Unidos nas décadas seguintes.

É, por isso, de alguma forma dececionante, e talvez indicativo de uma certa tendência cultural, que atualmente Risky Business seja em grande parte lembrado como uma comédia ligeira que mostra uma cena de Tom Cruise em roupa interior a dançar ao som de “Old Time Rock & Roll”, de Bob Seger. Os minutos de abertura anunciam imediatamente um tipo de filme muito diferente. Enquanto a câmara observa a noite nas ruas de Chicago através da janela de um comboio, a banda sonora marcante e hipnótica de Tangerine Dream conduz-nos a um sonho narrado em voz-off pelo protagonista, Joel Goodsen, interpretado por Cruise. Esta sequência, na qual uma fantasia sexual é interrompida de forma cómica pela intromissão brusca das responsabilidades da vida real, introduz o tema da dualidade que atravessa todo o filme e serve de princípio estruturante: superego vs. identidade real, subúrbios solarengos vs. a baixa noturna da cidade, dinheiro vs. sexo.

Inicialmente, Risky Business apresenta estes domínios enquanto binários. As cenas que dizem respeito ao desejo de liberdade e aventura de Joel, através de uma mise-en-scène onírica, contrastam de forma sedutora com a rotina banal do seu dia a dia. Quando contrata Lana (Rebecca De Mornay), a call girl que vira a sua vida do avesso, a sua chegada é filmada como algo saído de um vídeo do Meat Loaf. Ele está a dormitar no sofá na penumbra da sala de estar, com todas as janelas iluminadas de forma improvável a partir do exterior para lançar sombras sugestivas, e ela entra como uma aparição. Ela chama-o e ambos se abraçam com o intensificar da banda sonora. Enquanto ele lhe despe o vestido ao som dos lamentos da guitarra elétrica, uma rajada de vento abre de repente a porta do jardim trazendo um remoinho de folhas esvoaçantes. Tudo fica ainda mais ridículo a partir daí (as fotografias reais de Cruise em bebé são uma presença fabulosa) e, só para que a intenção satírica não seja confundida com puro mau gosto, a cena termina com os personagens a pinar numa cadeira Eames ao lado de uma televisão onde se vê uma bandeira americana.

De forma mais subtil, o comentário do filme expressa-se através de um esbatimento gradual da distinção entre os mundos reais e fantasiados de Joel. À medida que estes se misturam e se corrompem mutuamente, percebe-se que estão sujeitos à mesma lógica capitalista. Na escola, Joel é membro dos Futuros Empresários, uma associação de estudantes na qual os jovens apresentam uma ideia para um negócio e depois competem para obter um maior lucro. Embora a sua ideia seja um fracasso, quando ele e Lana aplicam os mesmos princípios para transformar a casa num bordel, ele ganha 8.000 dólares apenas numa noite, lucrando com uma margem ampla. O feito subversivo de Brickman em Risky Business é o de apresentar uma crítica social condenatória disfarçada de entretenimento, recorrendo ao modelo genérico da sex comedy adolescente, como Porky’s (1981), na qual o protagonista masculino acaba sempre por levar a melhor independentemente do seu comportamento reprovável, e esvaziando em simultâneo a humanidade de Joel.

Apesar de o estúdio ter forçado Brickman a mudar o final do filme e torná-lo mais otimista (a sua versão original pode ser encontrada no YouTube), a interpretação de Cruise não deixa dúvidas quanto ao preço a pagar pelo facto de Joel ter tomado consciência do seu privilégio. Pode ter conseguido tudo o que queria — viver na promiscuidade e entrar em Princeton — mas sai da experiência abalado, um Psicopata Americano em construção. O gracejo brincalhão entre ele e Lana enquanto desaparecem na noite de Chicago é forçado e vazio. Parecem menos amantes em direção a um final feliz e mais crianças a tentar desesperadamente recuperar a sua inocência perdida.

Giovanni Marchini Camia

Giovanni Marchini Camia é um escritor, editor e programador de cinema que vive em Berlim. É cofundador da Fireflies Press, uma editora especializada em livros sobre cinema, que inclui no seu catálogo Memoria by Apichatpong Weerasethakul, Pier Paolo Pasolini: Writing on Burning Paper, e a série de monografias Decadent Editions. A sua crítica cinematográfica foi publicada na Sight & Sound, Film Comment e Cinema Scope, entre outras, e é membro do comité de seleção de longas-metragens do Festival de Cinema de Locarno.

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