¿Qué he hecho yo para merecer esto!!, Pedro Almodóvar
Ricardo Braun
8 de Março de 2023

É nos primeiros minutos uma das cenas de que mais gosto neste filme. A avó (a magnífica Chus Lampreave, uma espécie de Buster Keaton no feminino, como diz o próprio Almodóvar — as frases em itálico daqui em diante são suas) oferece-se para ajudar Antonio com os deveres de casa. “Então”, começa ele, “diz quais destes autores são românticos e quais são realistas. Ibsen?”: “Romântico”. “Lord Byron?”: “Esse é realista”. “Goethe?”: “Realista também”. “Balzac?”: “Romântico. Vês que fácil?”, diz a avó. Porque não havemos de tentar o mesmo exercício: Almodóvar é romântico ou é realista?

Pedro Almodóvar chega a Madrid no fim do franquismo. Viera estudar cinema, mas Franco tinha fechado a Escola de Cinema, e a sua (má) educação faz-se nos anos que se seguiram ao fim da ditadura, os da Movida Madrileña, entre os que são iguais a ele: os fora-da-lei, os punks, os travestis. Mas não deixa de ser um filho da Espanha rural. Em Que Fiz Eu para Merecer Isto? é essa classe que reencontramos: a das famílias rurais obrigadas a sair, a procurar uma vida melhor na selva das cidades. Mas que vida melhor é essa? Chegadas à cidade, estas famílias eram atiradas para feiíssimos prédios de apartamentos, cinzentos, em bairros cinzentos e feios, que [representam] a ideia que o poder tinha do conforto do proletariado. São locais onde é insuportável viver. Os interiores são claustrofóbicos: a câmara encosta-se às paredes, mexe-se pouco. Mas mesmo neste mundo sem saturação, às vezes, sem razão aparente e de lado nenhum, vem uma luz cor-de-rosa, como um filtro, um sublinhado, como nos melodramas sociais de Sirk ou de Fassbinder.

Com este filme, Almodóvar continua a afastar-se das comédias puras, malcomportadas, do início da carreira (e, segundo ele, o público passou a olhá-lo com outros olhos: “É moderno, mas tem sentimentos”). Este filme restabelece a ligação com uma forma de narração de que gosto muito, a do neorrealismo italiano. O neorrealismo é para mim um subconjunto do melodrama cuja especificidade resulta da importância que dá à consciência social, e (...) que retira do melodrama tudo o que este pode ter de artificial (...).

Em Que Fiz Eu para Merecer Isto? substituí a maioria dos códigos do melodrama pelo humor negro. Um humor grotesco, até surreal. O neorrealismo já abria espaço à comédia, mas talvez estejamos mais perto daqueles realizadores que se lhe seguiram e que misturaram, nos seus dramas sobre a vida italiana, elementos de comédias um tanto ou quanto grotescas: Fellini, Scola, algum Pasolini, filmes com essas mulheres domésticas (...) sempre a gritar pelos filhos, mal vestidas, despenteadas, confrontadas com todo o tipo de problemas.

Mas não é por se filiar no neorrealismo que o filme é menos omnívoro. Sobre um filme posterior, um jornalista virá a escrever que, com aquele argumento, Hollywood poderia fazer dez filmes. Almodóvar está sempre a meter dez filmes num só. Mas todos esses géneros, todos esses códigos narrativos e visuais, nunca aparecem como citações: ele, um cinéfilo voraz, que tão bem escreve sobre outros filmes, não está a piscar o olho a outros cinéfilos. Os filmes e as canções e os livros aparecem porque rimam com as personagens, porque foram vistos e ouvidas e lidos pelo Almodóvar que é todas as personagens: que é o próprio filme. Como aqui: Antonio vai ver Esplendor na Relva (1961) e o filme rima com ele; como Warren Beatty, também ele quer deixar a escola e viver do campo. Está desenhada a sua fuga.

Todos estão em fuga, aliás. A avó, farta do frio de Madrid, quer voltar para a aldeia. O marido de Gloria ouve obsessivamente uma velha canção alemã e pensa na antiga patroa. Miguel, o filho mais novo, dorme com o pai de um colega, depois vai viver com um dentista (não há aqui um pingo de moralismo). A vizinha Cristal, prostituta (Verónica Forqué, toda desenho, o terceiro vértice deste filme de atrizes), está a aprender inglês para singrar em Las Vegas. Até o lagarto sai pela janela, mas isso é outra história.

E Gloria? Alguma fuga lhe é permitida? Ela é viciada em anfetaminas, que toma para aguentar a lida da casa, os seus muitos empregos, a frustração sexual, o colapso da família, a dureza, a fealdade de tudo aquilo. Carmen Maura podia cair numa caricatura de tanta desgraça, mas é mais inteligente do que isso. Gloria é o centro de gravidade do filme: tudo nela deve ser trágico, como se todos aqueles problemas apenas confirmassem a miséria que lhe coube em sorte. Almodóvar conta que Carmen Maura, quando viu o filme, lhe disse: “Meu Deus, que cruel! Como é que as pessoas podem rir-se desta personagem tão infeliz?” É uma sensibilidade muito espanhola, brutal como Goya ou Buñuel. Mas perante uma imagem grotesca refletida num espelho, podemos perguntar se é o reflexo que é disforme, ou se o espelho reflete limpamente uma realidade, ela sim, disforme. A questão é o espelho. Todos estes mundos, todos estes reflexos no espelho-Almodóvar, parecem, ao mesmo tempo, inventados e meticulosamente observados. Ou vice-versa. Perguntava se Almodóvar seria realista ou romântico. Aceito ambas as respostas.

Ricardo Braun

Licenciado em Som e Imagem pela UCP, Ricardo Braun foi assistente de dramaturgia e encenação de Nuno Cardoso, Rogério de Carvalho e João Pedro Vaz. Em 2012, fundou a OTTO e coencenou Katzelmacher, a partir da peça e do filme de R. W. Fassbinder. Orientou o grupo amador do Ao Cabo Teatro, dirigindo-o em espetáculos a partir de textos de Jean Anouilh e Ben Jonson/Stefan Zweig. Traduziu, ainda, obras de Marius von Mayenburg, Lars Norén e Ödön von Horváth. Atualmente, leciona dramaturgia no Balleteatro e é livreiro na Livraria Aberta.

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