Políticas do Sci-Fi: entre o sonho e o protesto, em 7 gestos
Guilherme Blanc
9 de Dezembro de 2022

A ideia de dedicar o primeiro programa do Batalha ao género da ficção científica tornou-se numa evidência. E isto foi de tal maneira vincado que se pode agora confessar que não tinha ainda a obra no Batalha começado, e já havia Políticas do Sci-Fi. Dois motivos poderão explicá-lo.

Quando definimos que o Batalha deveria prosseguir a sua nova missão no campo da imagem em movimento — algures entre o cinema comercial e o filme de artista, algures na fronteira entre a história e o nosso tempo — percebeu-se que o campo da fabulação tecnológica, e especulativa, poderia ser um ponto de partida estimulante para este entrelaçamento artístico.

Em segundo lugar, com a ficção científica pode ir-se a todo lado, no que diz respeito ao cinema. O seu advento foi desde cedo acompanhado por dramaturgias do género, e por uma reação social que se assemelhou, em si, a uma espécie de assombro tecnológico que só a ficção científica consegue exprimir e provocar, através das suas convenções.

O cinema tem por isso o sci-fi no seu ADN. Através do género conseguimos ir dos primórdios do cinema até algumas das práticas mais interessantes no campo da arte contemporânea — que o usam enquanto dispositivo, método ou ferramenta de discurso.

Mas não só. Com a ficção científica, podemos não apenas percorrer a disciplina do cinema mas também, em paralelo, alguns dos mais importantes gestos culturais e políticos do século XX e XXI. Principalmente aqueles que expressam formas de libertação de condições de domínio.

O ciclo inaugural Políticas do Sci-Fi deseja ser um espelho de tudo isto, debruçando-se sobre histórias que nos impelem a pensar sobre futuros preferidos, uma expressão precisa do autor e artista Kodwo Eshun (importante para o movimento afrofuturista e que John Akomfrah convocou para o seu já clássico The Last Angel of History, incluído no ciclo).

Cada um dos sete capítulos que compõem o programa de cinema sugere leituras que são pontos de partida para debates distintos. Todos eles tendo em comum a ideia de que a ficção científica não propõe prever o futuro, mas antes distorcer o presente, para sobre ele reflectir, como sugeriu Samuel Delany. Muitas vezes, conseguindo antecipar o devir, como se provou ao longo do tempo— e, talvez sem surpresas, o próprio ciclo acaba por comprová-lo através do capítulo Tensões Nucleares, que delineamos bem antes de se iniciar a recente guerra na Ucrânia.

Os sete capítulos representam, em si, tendências ou até movimentos de cinema que serviram de terreno fértil para a criação de obras que se tornaram icónicas. O mais canónico será porventura aquele a que chamamos Ditaduras de Desejo, onde se poderiam inscrever dezenas de filmes que acompanharam movimentos revolucionários e contestatários do seu tempo, para reflectir sobre sociedades de controlo e a forma como, nelas, o amor se pode cultivar. Godard, Truffaut, Marker, Tarkovsky, até aos mestres de ficção científica americana— como Ridley Scott, ou Cronenberg, sem esquecer a icónica Lynn Hershman Leeson, a cujos corpos cyborg dedicamos uma retrospectiva no Porto há dois anos—, tantos foram a/os cineastas que trabalharam o tema a partir deste ângulo. Escolhemos simbolicamente um único filme para integrar este capítulo: um filme português — A Confederação, exemplo raro do género em Portugal; em torno deste filme, desenvolvemos Políticas do Sci-Fi ainda uma exposição documental onde investigamos a sua produção e ampla teia de ligações artísticas, integrando também o conto que lhe deu origem no livro Leituras de companhia, que editamos para acompanhar o programa.

Tanto com os filmes, como com os cinco contos do livro, interessou-nos especular transversalmente sobre três conceitos fundamentais: tecnologia, natureza e tempo. Escolhemos obras que permitem discutir a forma como a inventividade técnológica serve de mero aparato alegórico para discutir o político. O político real. E, ao mesmo tempo, discutir conceitos que merecem declinação cultural. Começando pelo próprio conceito de tecnologia. O que ele é, pode ser, ou pode representar. Exploramo-lo com maior insistência no capítulo Voz Subalterna, onde determinadas ideias tecnológicas, e científicas, surgem como instrumentos de escape, sublevação e protesto de classe. De afirmação de identidades, também. Nem só as máquinas voadoras nos permitem alcançar mundos melhores.

Alguns dos contos do livro são ilustração disto mesmo — da voz feminista de Pamela Zoline, aos dois novos contos comissariados a Andreia C. Faria e Rodrigo Vaiapraia, ambos no limiar das distopias técnicas onde o amor tenta encontrar certos pontos de fuga. A questão da Natureza, do seu fim, é analisada a partir de lentes melancólicas. Escolhemos filmes que se balançam entre uma esperança de salvação, e uma desgraça anunciada. “Porque procuram os humanos vida extra-terrestre, quando há espécies no nosso planeta em vias de extinção?”, perguntam-nos os dois papagaios — a cujos diálogos o aclamado autor de ficção científica Ted Chiang deu vida — no filme The Great Silence, de Jennifer Allora e Guillermo Calzadilla. Por fim, debatemos a noção de tempo enquanto conceito de cultura e de espírito; enquanto construção circunstancial e por isso volátil. Uma questão premente nas obras de arte afrofuturistas (o próprio conto The Comet, de Du Bois, que incluímos no livro, é disso exemplo), mas também noutras expressões culturais que dão atenção a situações de extração e ocupação. Por isso Edward Said colocou a pergunta, a propósito da Palestina ocupada: como se pode ter uma noção linear de tempo quando a escola, a casa, os cafés, o bairro onde vivemos deixaram de existir? Foi precisamente a partir do pensamento deste autor que o capítulo do programa Marcas de Desaparecimento foi desenvolvido.

Em todos os filmes, assim como nos contos que quisemos juntar no “livro de companhia”, articulamos a ideia de que o tempo, em si, pode ser uma mera construção social, talvez até uma massa cíclica, como propôs Michel Serres, cuja obra, um dia, se achou meramente especulativa e que mais e mais se considera fiel a acontecimentos actuais. Com filmes de arquivo, regressamos ao presente; com filmes e contos contemporâneos, perspetivamos o passado. Isto, recorrendo à frase canónica de Donna Haraway, para dizer que o que separa a realidade social da ficção científica pode ser uma mera ilusão de óptica.

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