Programação

Programação

Cinema ao Redor

Cinema ao Redor

FS Paris BluesFS Paris BluesFS Paris BluesFS Paris Blues

Limpar filtros

FS Paris Blues

Filtrar

Paris Blues
Álvaro Domingues
22 de Fevereiro de 2025

Na hora da despedida, dois casais, um negro e outro branco, abraçam-se na grande estação de Saint-Lazare, Paris. Corria o ano de 1961. O casal afro-americano vive aquele momento como início de um futuro nos EUA para onde o homem irá depois de uma vida de músico de jazz na noite parisiense. O outro casal desencontra-se entre indiferença e amor não correspondido: ela regressa a casa com a mágoa de não ter conseguido levar aquela paixão breve e intensa; ele permanecerá em Paris lutando tenazmente por um reconhecimento enquanto músico de jazz do mesmo quilate da música erudita.

 

É a música de Duke Ellington e Strayhorn (os compositores da banda sonora de Paris Blues), primeiro melancólica e melódica e, depois, quase cacofónica, que melhor descreve estas divergências. Ao fundo, na estação, substitui-se um cartaz publicitário onde antes estava anunciado um concerto de uma estrela do jazz afro-americano, Wild Man Moore (Louis Armstrong), triunfalmente acolhido em Paris por uma multidão que se apinhava para receber o deus do jazz da voz rouca e do trompete. Depois de Armstrong virá o cartaz da Livraria Larousse e terminará a história dos americanos em Paris, do jazz e dos clubes, das paixões e de certos atritos raciais. Paris, como diria M. Foucault referindo-se aos lugares de múltiplos imaginários e experiências, é uma heterotopia dos encantamentos de Saint-Germain-des-Prés, de Montmartre, dos cais do Sena e das pontes, das mansardas, das caves dos clubes nocturnos, ou do mítico Lapin Agile, onde andaram Picasso, Braque, Modigliani, Man Ray, Chaplin, Cendrars, Rudolpho Valentino, Apollinaire e muitos outros nomes marcantes das artes e espectáculos, das letras, da política ou, simplesmente, da noite de Paris, dos cafés, dos cabarés, das livrarias, dos teatros…, da palavra e do pensamento em liberdade, ao mesmo tempo, marginal e cosmopolita, lugar do mundo e imagem real/imaginada de Paris do jazz dos anos 1920 e, depois da Segunda Guerra, do existencialismo, das tournées de Ella Fitzgerald, Nina Simone, Miles Davis, Count Basie, etc., do Nouveau Roman, da Nouvelle Vague ou do abstracionismo.

 

Para o grande público americano, Paris estava presente na peça orquestral de George Gershwin, Um Americano em Paris, estreada em 1928 e muito influenciada pelos Années folles de 1920. De forma magistral, Gershwin mistura Ravel, Debussy ou Stravinsky, com o clarinete, o saxofone, o trombone, as tubas, os sons das buzinas dos táxis de Paris e a ambiência dos blues e do jazz, fundindo estéticas tidas como opostas. Maurice Ravel terá um dia comentado: “Porque é que te querem tornar um Ravel de segunda se tu já és um Gershwin de primeira?”

 

Em Paris Blues, a questão persiste: Ram Bowen (Paul Newman), compositor em busca de um lugar no mundo da música “séria”, questiona o seu amigo músico Eddie acerca da sua partitura; este responde: All right, you’re Gershwin, you’re Ravel and Debussy (…). Look, you’re Ram Bowen (…). Ram Bowen, all by itself.” Estava em causa o embate entre a erudição e os géneros “menores” como o jazz. Gershwin levara já a sua “Rhapsody in Blue” (1924) para as grandes salas, legitimando o jazz sinfónico nos meios da “alta cultura” e incentivando os compositores afro-americanos: Ellington compõe a “Creole Rhapsody” em 1931 e transcreve — junto com Strayhorn — e toca a “Rhapsody in Blue”. Josephine Baker actuava no mítico Cotton Club ou no Plantation Club nos anos 1923/24. Em 1925, iria para Paris para o Théatre des Champs Elysées interpretar a “La Revue Nègre” e a “Danse Sauvage” ao ritmo do “Le Jazz-Hot”: a Harlem Renaissance existia no outro lado do Atlântico e a cultura negra impunha-se junto das vanguardas artísticas.

 

Com Armstrong ocorriam outras fracturas. Com o seu estilo inconfundível e uma poderosa linguagem corporal subvertendo a identidade afro-americana do “New Negro” (Alain Locke, 1925), Armstrong chegou aos anos de 1950 como um “oncle Tom”, um produto da cultura branca dominante bem expressa na curta-metragem Rhapsody in Black and Blue (1932), onde usa uma pele de leopardo, rodeado de figurantes típicos de uma cena Hollywood, como um rei “primitivo” e a sua corte.

 

Desde 1948, Strayhorn vivia em Paris com Aaron Bridgers, pianista no Mars Club que inspirou o próprio Club 33 do filme (primeira cena), onde se percebe uma clientela nada convencional para a época, incluindo casais inter-raciais, homossexuais, jovens junto de mulheres maduras, toxicodependentes como o guitarrista Devigne. Amstrong mistura-se com os músicos do Club 33, mas aquilo que para muitos é uma oportunidade especial que junta tão celebradas personagens é, para outros, uma cedência comercial de um filme que não descola do estilo romântico de Hollywood. O próprio Ellington ficou bastante irritado com a oportunidade perdida para a causa racial. Eddie Cook, o músico negro, diz à sua namorada negra, Connie, que em Paris não se discriminam os negros; ela responde que nos EUA as coisas estavam a mudar não porque os negros se mudam para Paris, mas porque permanecem em casa. E por aí se fica. O resto são cenas de um clube na Rive Gauche onde se misturam brancos e negros a tocar jazz. Fora da ficção, Paris vivia tempos sobressaltados e violentos associados ao massacre de argelinos em Outubro de 1961 e à Guerra da Argélia.

 

Os anos de 1920, da Revista Negra, do jazz e do swing, e os anos de 1950 dos existencialistas, de Jean-Paul Sartre, Simone Beauvoir, Merlau-Ponty, Jacques Prévert, Boris Vian, Juliette Gréco…, mitificaram o ambiente de Saint-Germain-des-Prés e de Montmartre, a geografia das vanguardas, da boémia nocturna dos clubes, caves e restaurantes, livrarias, lugares da moda e lugares-comuns onde o jazz era o símbolo da liberdade e da crítica à moral burguesa e conservadora. Assim se produzia e divulgava o exotismo à francesa que Vincente Minnelli passa para o cinema em Um Americano em Paris (1951): a música de Gershwin existe numa Paris de bilhete postal, em coreografias exuberantes, alegria, sapateado em cima do piano e… vazio político total.

 

Dez anos depois, em Paris Blues, Martin Ritt trabalha uma Paris nostálgica onde as fracturas raciais, as polémicas do jazz e o ambiente electrizante dos clubes estão já totalmente amaciados. Paris é um romance e os EUA estão longe. Salve-se o jazz de Ellington e Strayhorn tocado pela Ellington’s Orchestra com Armstrong em duas interpretações. Dois anos depois da estreia do filme e já com nacionalidade francesa e 57 anos, Josephine Baker estaria com Martin Luther King no histórico dia de 28 de Agosto de 1963 em Washington: “I have a dream!

Álvaro Domingues  
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.

Batalha Centro de Cinema

Praça da Batalha, 47
4000-101 Porto
+351 225 073 308

batalha@agoraporto.pt

A enviar...

O formulário contém erros, verifique os valores.

O formulário foi enviado com sucesso.

O seu contacto já está inscrito! Se quiser editar os seus dados, veja o email que lhe enviámos.

FS Paris BluesFS Paris BluesFS Paris BluesFS Paris Blues

©2024 Batalha Centro de Cinema. Design de website por Macedo Cannatà e programação por Bondhabits

batalhacentrodecinema.pt desenvolvido por Bondhabits. Agência de marketing digital e desenvolvimento de websites e desenvolvimento de apps mobile