Quando era adolescente, ouvi falar de um livro, Orlando, escrito em 1928 por Virginia Woolf. Da história, sabia apenas que o personagem principal transitava entre géneros e que, ao longo da vida, se apaixonava por mulheres e por homens.
Foi o suficiente para inflamar a minha curiosidade.
Cresci nos arredores de uma cidade pequena do interior. Não tinha quaisquer referências LGBTQIA+. Não se falava abertamente sobre estes temas e só muitos anos depois a Internet viria revolucionar a comunidade disponibilizando informação, conexão e apoio social.
Aquele livro não respondia às minhas questões mais secretas. A transformação de Orlando dá-se de forma sobrenatural e é narrada como apenas mais um acontecimento da sua longa e atribulada vida. Mesmo assim, Orlando revelou-se um personagem inesquecível e ainda hoje guardo com carinho o livro, muito sublinhado.
Para escrever o romance, Virginia Woolf inspirou-se na sua amante e também escritora Vita Sackville-West. Vita tinha um passado aristocrático e adorava a propriedade da sua família, concedida pela Rainha Elizabeth I, mas que ela nunca poderia herdar por ter nascido menina.
Na indústria do cinema, muitos profissionais eram da opinião de que adaptar este romance para o cinema seria impossível, caro e desinteressante. Mas Sally Potter apoia-se nas subtilezas feministas da narrativa, capta a natureza encantatória de Orlando e consegue a proeza de desdobrar uma narrativa complexa em diálogos concisos e imagens ousadas.
Outra força de Orlando é Tilda. A partir do momento em que vemos este filme, Orlando passa a ser Tilda Swinton, e é impossível não ficar magnetizado pela sua aparência andrógina e angelical e pelos seus olhos que parecem berlindes escuros.
Enquanto o livro nos mergulha nas reflexões íntimas e no retrato psicológico de Orlando, o filme elimina a quarta parede. Orlando olha diretamente para a câmara, ou seja, para os nossos olhos, manifestando os seus sentimentos e buscando cumplicidade.
Ao tornar-se uma mulher, Orlando, nua, declara: “A mesma pessoa, sem diferença alguma. Apenas um sexo diferente.”
Uma afirmação poderosa em contraste com uma sociedade que não diz o mesmo e que impõe normas estritas e condições diferentes para homens e mulheres.
Por mais que viva e aprenda o que se espera de um homem ou de uma mulher, Orlando é sempre alguém em desfasamento com a norma, e, portanto, capaz de ver através dela e de a questionar.
O que é uma mulher? Uma categoria criada pelos homens a seu gosto e que só eles poderão explicar? Um ser espartilhado, com os movimentos sempre tolhidos pelo peso e volume da própria roupa? E o que é um homem? Um inimigo na guerra continua a ser um homem, ou é apenas um ser que se deve deixar entregue à morte?
Orlando é um peixe fora de água e portanto, um peixe que consegue conhecer a água. Com poesia, inocência e capacidade de maravilhamento, escapa sempre ao que as diferentes sociedades e épocas declararam ser o destino social e biológico de um homem ou uma mulher.
Orlando vive quase 400 anos. Atravessa sexos/géneros, mas também modas e correntes de pensamento. Vai do período Isabelino, até ao séc. XX, passando pelo barroco e pelo romantismo. Ao longo do tempo, toma em mãos o seu destino e torna-se, conscientemente, não homem ou mulher, mas pessoa.
Recentemente, o filósofo e escritor Paul B. Preciado retomou a obra de Woolf para filmar a sua biografia política. Para Preciado, todas as pessoas trans são Orlando. Pessoas que pela sua condição se veem obrigadas a questionar as categorias de género.
Não direi que Orlando de Sally Potter é um filme trans, mas é um filme queer, que reage à homofobia e ao neoconservadorismo da Grã-Bretanha da época.
Em 1988, em plena crise da SIDA, o governo de Margaret Thatcher introduziu a Secção 28, uma emenda que proibi a “promoção da homossexualidade”. Esta medida homofóbica levou à censura de livros, peças de teatro, filmes ou qualquer material que abordasse relacionamentos homoafetivos. A Secção 28 só foi revogada em 2003.
Um detalhe num filme cheio de detalhes: o papel da rainha Isabel I é representado por Quentin Crisp, um popular ícone gay em drag. Mais tarde, aos 90 anos, pouco tempo antes da sua morte, Crisp manifestou não ser um homem gay, mas uma mulher trans.
Quantos anos temos de viver para conseguir contar a nossa história?
André Tecedeiro
André Tecedeiro é poeta, dramaturgo e artista plástico. É licenciado em Pintura (FBAUL) e em Psicologia (FPUL) e mestre em Artes Plásticas e em Psicologia do Trabalho. Publicou oito livros de poesia em Portugal, Brasil, Colômbia e Espanha, entre os quais A Axila de Egon Schiele (Porto Editora, 2020), recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. Os seus poemas estão representados em mais de vinte revistas literárias e antologias. Para teatro, escreveu Joyeux Anniversaire (2021), Desfazer (2021) e O Ensaio (2023).
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