Em 1969, a feminista francesa Monique Wittig (1935–2003) publicou Les Guérillères, um romance experimental que desafiava as narrativas binárias que impõem limites sobre as definições de género. Escrito no contexto político do Maio de 68, dos movimentos de libertação das mulheres, e das lutas decoloniais, Wittig criou um poema épico feminista que instigava as mulheres a destruir o patriarcado e a linguagem que perpetua a opressão histórica e material das mulheres. O livro é considerado uma fonte revolucionária de pensamento feminista na sua crítica à normatividade heterossexual e às regras do patriarcado. Wittig expõe os usos políticos das discriminações biológicas no estabelecimento de um sistema de género, alegando que o termo “mulheres” é definido pelos homens, e assim sendo o sistema de sexo-classe deve ser abolido para que novas formulações de género possam emergir. É através desta transformação radical que as mulheres se tornarão sujeitos falantes/nomeados, libertadas das categorias de “homem” e “mulher”. No livro, o pronome Elles aparece como uma entidade plural enigmática, protagonista feminina coletiva, e exército de guerreiras que lideram uma luta violenta contra a dominação patriarcal. A sua ação militante subverte as expetativas tradicionais de papéis de género tornando obsoleta a ideia de uma essência feminina imutável.
Inspirado em Les Guérrillères de Wittig, a longa-metragem de Beatriz Santiago Muñoz, Oriana, é uma adaptação pessoal e idiossincrática do livro, reinterpretada pela artista no contexto da ilha de Porto Rico. Explorando a forma como o discurso se manifesta no corpo e como reflete relações profundamente enraizadas em processos políticos e económicos, o filme é menos sobre narração de histórias e mais sobre linguagem e realidade sensorial, diz Santiago Muñoz. A primeira iteração de Oriana foi apresentada em 2021 no Pivô, em São Paulo (co-produzida pela 34ª Bienal de São Paulo), dividindo o filme em sete projeções através do espaço expositivo, com uma banda sonora original composta pela banda brasileira Rakta, e mostrada juntamente com máscaras e objetos que reaparecem durante o filme. Como aponta Fernanda Brenner, a curadora da exposição, a filmografia de Santiago Muñoz “justapõe o documental com o ficcional e é em si mesma um convite para desautomatizar uma forma de ver e de estar num mundo criado e apoiado pelas narrativas eurocêntricas de progresso e desenvolvimento.”
A tradução poética de Santiago Muñoz, do texto para imagem em movimento, procura ecoar a experimentação de Wittig com a linguagem. Desenvolvida em colaboração próxima com um grupo de performers e ativistas feministas, a câmara segue estas mulheres enquanto deambulam por florestas tropicais, rios, grutas, e abrigos, envolvendo-se em rituais coletivos, estratégias de sobrevivência e atos de cuidado. Num tempo e num espaço indeterminados, a estrutura do filme cruza cenas ensaiadas e improvisadas, entre rituais fúnebres, mitos e banhos de rio. Ora luminoso, ora sombrio, as qualidades visuais, sónicas e tácteis incorporadas na paisagem cinemática da artista apontam para as interdependências entre humanos e não-humanos. Num território marcado pela violência colonial e práticas extrativistas, Santiago Muñoz cria uma eco-temporalidade que acentua a nossa interdependência dos sistemas terrestres, entrelaçando o processo de filmar com uma preocupação ética de justiça social e ambiental. Como refere Donna Haraway: “Para que haja uma eco-justiça, que também possa abraçar pessoas humanas diversas, é mais do que tempo das feministas exercerem a liderança na imaginação, na teoria, e na ação, para desfazer os laços tanto da genealogia e do parentesco, como do parentesco e das espécies.”
Na sequência de abertura de Oriana, uma mão desenha um círculo vermelho no corpo de uma mulher, com um pincel, usando pigmento de plantas. O som dos pássaros e a presença de uma flora exuberante situam o espetador na paisagem tropical das Caraíbas. Minutos depois, a imagem é a de um grande plano de uma boca; a lente segue o movimento dessa boca ao tenta falar, como se as palavras estivessem a lutar para encontrar um caminho através dos pulmões e da garganta para o mundo. Santiago Muñoz diz que “faz filmes com os lugares.” Estes planos colocam em evidência as qualidades formais da estrutura não-narrativa e fragmentada do filme, em que cosmologias indígenas e visões do mundo não-eurocêntricas assumem lugar central. A câmara de Santiago Muñoz quebra o tempo linear em busca de uma linguagem eco-feminista que é formulada não por um corpo único, mas na teia de relações entre entidades humanas e não-humanas, para lá da divisão entre natureza e cultura.
Seguindo as palavras de Wittig no último capítulo do livro, uma voz off diz ao espetador: “Dizem que todos os livros devem ser queimados e que só se deve conservar a parte deles que possa ser utilizada com vantagem numa época futura" (...) Dizem que, em primeiro lugar, o vocabulário de todas as línguas deve ser examinado, modificado e virado do avesso de alto a baixo, que cada palavra deve ser escrutinada.” Através do potencial emancipatório da linguagem, da vida comunitária e da luta política, Oriana reflete um entendimento radical de género enraizado num vocabulário partilhado que cria as condições para um novo começo.
Sofia Victorino
Bolseira da FCT no Doutoramento em História Contemporânea da FCSH, Sofia Victorino possui um mestrado em Contemporary Cultural Processes, pela Goldsmiths (Londres). Entre 2011 e 2021 foi Diretora de Educação e Programas Públicos na Whitechapel Gallery (Londres), assumindo funções ao nível da programação artística e curadoria. Anteriormente, foi Coordenadora do Serviço Educativo do Museu de Serralves (2002–2011). Leciona no mestrado Curating Art and Public Programmes, da London South Bank University e integra o Conselho Consultivo da coleção Documents of Contemporary Art, coeditada pela Whitechapel Gallery e pela MIT Press.
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