“μετέωροςμετέωρος” / “metéōros” [1]
Na exposição O que aconteceu ainda está porvir, exibida de forma expandida e fragmentada na Solar — Galeria de Arte Cinemática e no Batalha Centro de Cinema, Ana Vaz apresenta três capítulos da série de “poemas cinematográficos” Meteoro. O título da exposição cita um verso da canção “Índios”, tema do álbum Dois, lançado em 1982 pela banda de rock de Brasília Legião Urbana.
Os Meteoros dialogam com uma vasta genealogia, que contempla a sinfonia urbana. Tal como nesse género cinematográfico vanguardista, a obra escava caminhos que espacializam a história e temporalizam o espaço urbano, da cidade do Porto no caso dos seus dois novos episódios. Do Monumento ao Esforço Colonizador Português, construído para a Exposição Colonial Portuguesa de 1934 no Palácio de Cristal e desde 1984 instalado na Praça do Império, à Ponte de D. Luís, à Ponte da Arrábida e ao próprio Rio Douro, os Meteoros perscrutam a colonialidade da cidade e do Vale do Douro, apontando para a existência e prevalência de formas de colonialismo externo e interno — particularmente no que respeita à infra-estrutura de produção agrícola e industrial, ao modelo de propriedade e à divisão social do trabalho, bem como à circulação de matérias-primas, de mercadorias e do capital entre as zonas do sistema-mundo e entre a burguesia local e os latifundiários e industriais ingleses.
A obra expande a dimensão espectral de certas sinfonias urbanas, como, por exemplo, Paris qui dort (René Clair, 1925), Douro, Faina Fluvial (Manoel de Oliveira, 1931) ou On Africa (Skip Norman, 1970) através de enquadramentos e ângulos de câmara que parecem manifestar, na linha vertoviana, outra possível referência, “um desdém pelo mimético”, [2] bem como do trabalho da materialidade da película de 16 mm a preto-e-branco. As sobre-impressões — forma fílmica central nas sinfonias urbanas e no cinema de vanguarda em geral — figuram aqui um devir material, espectral e metamórfico, em diálogo com os textos de Kafka e de Coetzee, expostos na Sala-Filme, e com os próprios murais do edifício.
Os Meteoros dão a ver aquilo que está dentro e o que está além: a infra-estrutura material e a infra-estrutura imaterial e espectral do Império — as estruturas industriais e de trânsito, os fluxos de electricidade e as circulações dos minérios, mas também os monumentos, o museu e as ruínas, o lixo, a malaise que habita as assombradas cidades coloniais. O cinema meteórico coloca-se aqui contra o cinema-malaise para problematizar também um dos paradoxos do cinema: a sua função como dispositivo da modernidade-colonialidade face à sua capacidade para restaurar modos perceptivos e cognitivos que foram historicamente suprimidos pela imposição da racionalidade moderna, o “Cinema” como “assombração”, formulado na fábula Meteoro. [3]
Fundo e forma
Duas temáticas atravessam, entrelaçadas, a obra de Vaz, adquirindo nela uma importante expressão formal. Por um lado, questões ligadas à multitemporalidade do acontecimento: a experiência, a rememoração, múltiplas interpretações e perspectivas multiplicadas. Por outro, uma desmistificação não só da história dos modernismos, mas também das suas formas visuais, sobretudo arquitectónicas e cinematográficas.
Da opera prima Sacris Pulso (2007) a filmes mais recentes, como Apiyemiyeki? (2020) e É noite na América (2022), passando por A Idade da Pedra (2013) e Occidente (2014), a filmografia de Vaz evidencia um notável equilíbrio entre fundo e forma. O que aconteceu ainda está por vir representa um ponto de abertura e expansão desse exercício de funambulismo.
Desde as suas primeiras formulações, a filmografia da cineasta reflecte sistematicamente sobre questões ligadas à modernidade-colonialidade através de formas que não só põem a causa o paradigma visual moderno-colonial, mas que também desestruturam formalmente as visualidades anti-coloniais nas suas manifestações históricas. Porém, é talvez com a forma especular dos dípticos (os Meteoros espelham-se reciprocamente) — forma que reflecte os espelhos e cristais figurados pela imagem e evocados pela palavra colectivamente agenciada — que um tal equilíbrio mais incisivamente se afirma. Essas formas, figuras, estruturas e imagens cristalinas, mutuamente reverberantes, não se revestem apenas de uma dimensão figurativa ou figural: são instrumentos de visão e pensamento que operam rupturas perceptivas e cognitivas.
A experiência dos Meteoros é de estranhamento (no sentido de ostranenia, остранениеостранение). [4] A espectadora experiencia a instabilidade ontológica da representação: um estranhamento perceptivo e cognitivo ao qual se soma a impressão de que as formas discursivas talvez anunciem e sejam traços de profundas transformações por vir e já em devir, antecipando a sua manifestação material concreta. Os Meteoros relevariam, portanto, de um cinema oracular. [5]
Circulando em poderosas metáforas, profundamente ancoradas na história mundial, bem como na conjuntura geopolítica e na catástrofe ecológica actual, o esforço material da obra está, então, na veemência com que estilhaça as estruturas do Império e o seu edifício conceptual, tornando-os elásticos.
Imagem-cristal
Os motivos do cristal e do espelho proliferam nos Meteoros, desde logo através da referência intertextual à canção “Índios” dos Legião Urbana. Na quinta e na última estrofes da letra da canção, que evoca a colonização portuguesa do Brasil e o genocídio dos povos indígenas, o compositor e vocalista Renato Russo canta, adoptando a perspectiva e a cosmovisão do colonizado, movimento transversal à obra de Vaz: “nos deram espelhos e vimos um mundo doente”. [6] O verso remete para uma prática amplamente descrita na literatura colonial: a oferta de espelhos aos povos colonizados como dispositivo que contribuiu historicamente para alicerçar o dualismo entre identidade e alteridade e as ideias de acumulação e multiplicação, pilares do sistema capitalista-colonial. Nestes, o cristal (que é também a matéria da lente cinematográfica) e o espelho habitam as palavras e são figurados imageticamente: o cristal como matéria e fluxo em Déesse e, no final desse díptico, as mãos que, em gestos deícticos, mostram um espelho luminoso em queda que se estilhaça no chão.
Os dípticos transpõem este regime narrativo e estético ao campo do cinema expandido, dando origem a pontos de fuga temporais e a agenciamentos recíprocos entre a história e a efabulação: em Os Últimos Habitantes, a partir do conto homónimo de Isabel Carvalho, emergem sons-imagens cristalinos que des-pensam a história da exploração e da exportação de urânio na Urgeiriça durante o Estado Novo. [7]
Espelhos e cristais são superfícies reflectoras do invisível, ao mesmo tempo que instrumentos de refracção da mīmēsis. O cinema é aqui uma máquina de pensamento e de acção ontologicamente instável e emancipada da tradição mimética, uma máquina que pensa o mundo, a história, humana e natural, desestruturando o modelo representativo, bem como os modos perceptivos e cognitivos do aparato cinematográfico nos seus usos dominantes.
O cinema espectral de Vaz dá a ver aquém e além do visível, para dentro e mais longe, como reflexo e no escuro, tacteando e estilhaçando espelhos, e assim expõe, desmontando-as, as engrenagens do sistema capitalista-colonial. Essa é a condição de uma perspectiva activa e ética, des-fantomalizante.
[1] A palavra “meteoro” tem a sua raiz etimológica no vocábulo grego “μετέωρος” / “metéōros”, isto é, “suspenso” ou “levantado do chão”.
[2] Michelson, Annette. Kino-Eye, The Writings of Dziga Vertov / ed. por Annette Michelson. Berkeley, Los Angeles e Londres: University of California Press, 1985, p. XXV.
[3] Concretamente, na passagem final: “The traveller ceases to travel and becomes hostage to the haunting images, a cave out of which their body is made. The haunting was once called Cinema”. Vaz, Ana. Meteoro, 2023, p. 1.
[4] Chklovski, Victor. L’art comme procédé (1917). Théorie de la littérature. Textes des Formalistes russes réunis / ed. por Tzvetan Todorov. Paris: Seuil, 1965, pp. 76-97.
[5] Bakhtin, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.
[6] Para ouvir a canção: https://www.youtube.com/watch?v=XoiW5NmrMbE (30 de Agosto de 2024).
[7] A este respeito, ver Castaño, David. O Aliado Fiel. As negociações para o acordo de exploração e exportação de urânio de 1949. Ler História, nº 60, 2011. URL: https://journals.openedition.org/ lerhistoria/1524 (19 de Agosto de 2024).
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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