Concentrando-se em traços universais da tragédia dos humanos, O Pagador de Promessas — a peça de teatro do escritor e dramaturgo Dias Gomes (1922–1999), publicada em 1959, e o filme de Anselmo Duarte (1920–2009), de 1962,— é também uma obra do seu tempo e lugar.
1960 é o ano de inauguração de Brasília, um gesto de refundação do Brasil de então que, como hoje, se debatia com a utopia da modernização e da democratização de um país a braços com uma sociedade injusta, uma elite dirigente oscilando entre autoritarismos esclarecidos, coronéis e militares, capital e negócios, artistas de vanguarda e, sobretudo, um mar de pobreza saído dos tempos do regime colonial, da escravatura, da concentração da terra, da riqueza e do poder de muito poucos sobre a maioria. O golpe de 1964, com amplo apoio da igreja católica, do latifúndio agrário e da burguesia industrial, fez ruir completamente a frágil democracia brasileira e as esperanças dos “anos dourados” do presidente JK, Juscelino Kubitschek. Construída pelos candangos pobres que não puderam aí morar, Brasília ostentava uma modernidade radical onde o poder se instalou: como escreveu Gilberto Freyre, longe do Plano Piloto — a Casa Grande —, nas favelas, nos terrenos invadidos, nas cidades-satélite, multiplicavam-se as senzalas.
Zé do Burro é um personagem saído do mundo anónimo da pobreza rural, carregando a cruz da sua origem, da sua visão do mundo e das suas crenças construídas entre o catolicismo popular e o misticismo dos terreiros de candomblé. Porque o seu burro se tinha curado de uma ferida mortal, Zé prometeu a Iansã e à sua dupla católica Santa Bárbara, que carregaria uma cruz até Salvador da Bahia e que dividiria a sua propriedade por outros agricultores pobres. Nessa via-sacra até à cidade e a uma igreja que lhe não abriu as portas por imposição de um padre conservador, o pagador de promessas é acompanhado por Rosa, sua mulher, ora solidária com Zé, ora fascinada por Salvador e por galanteadores bonitões e pouco recomendáveis.
A linearidade desta história e o firme propósito de Zé cumprir a sua promessa constituem o motor da caminhada para o abismo — tudo em Salvador, desde a prepotência do padre e da hierarquia da Igreja, aos jogos de manipulação mediática do caso, às leituras políticas de tão radical e convicto gesto, à desconfiança das autoridades e da polícia secreta…, tudo se foi compondo para, por razões diferentes, impedir o cumprimento da promessa. Nem a própria força cultural da população afro-brasileira de Salvador da Bahia — impulsionada por Gilberto Freyre e pelos Congressos Afro-Brasileiros, Recife, em 1935 e Salvador, 1937 — consegue mudar a condição do Zé que insistia em depositar a cruz na Igreja de Santa Bárbara e não num terreiro de Iansã.
Encaixado entre altas paredes e, no topo, a fachada monumental da igreja, o grande escadório é o cenário sem saída que se vai fechando sobre Zé do Burro. Aí desaguam todas as tensões e oportunismos: o Zé é herege, louco, simplório, desgraçado, ou revolucionário comunista: a terra deve ser de quem a trabalha, disse Zé sem entender o significado da expressão reforma agrária contida na pergunta do jornalista que queria transformar Zé num guerrilheiro defensor das causas dos sem terra. A inocência e a força de carácter de Zé do Burro acabam por ser a vítima do avolumar das tensões que nele se focaram de forma diversa e contraditória.
Morto no tumulto que se desenrolou no escadório e crucificado pelos capoeiristas na própria cruz que carregou, Zé e a sua fé transformam-se em arma mortífera da revolta nas mãos dos pobres que arrombam e ocupam a igreja. Cumpria-se, assim, uma espécie de teologia da libertação: Zé do Burro seria um dos seus mártires por, sem o querer, ter transformado a tenacidade do seu misticismo e rectidão moral, numa força que expôs as contradições dos poderosos e dos oportunistas, contagiando os da Roda da Capoeira que tomando consciência de si e do grupo social que representavam, se mobilizaram na voz e na acção política. O ópio do povo, a conhecida metáfora que culpa a religião por apaziguar a revolta perante as misérias e a servidão, pode ser pólvora nas mãos dos oprimidos.
Entretanto, os milagres da ciência e da tecnologia, a racionalidade e o progresso que a modernização prometia, não bastaram para colonizar o pensamento religioso. Os deuses perderam a centralidade que tiveram na organização da vida dos homens, mas não morreram. O desencantamento do mundo e a “desmagificação” não provocam o desaparecimento das crenças religiosas, mas a sua fragmentação e dissipação em estilhaços que se inscrevem em novas representações e práticas da vida individual e colectiva. As teocracias continuam perigosas.
Tudo o que nos fragiliza, tudo o que não se entende, que se revela de forma fugaz, tudo o que nos parece grandioso e “transcendente”, tudo o que é insólito, inexplicável, tudo o que nos maravilha ou aterroriza, pode transformar-se numa hierofania, numa manifestação do sagrado. As mais profanas criaturas não se cansam de inventar os seus lugares santos, as suas relíquias e coisas mais ou menos sagradas. Os festivais de Verão e os estádios enchem-se de fiéis. A fé inundou o ciberespaço. A Terra Santa está a ferro e fogo porque há uma gente que acredita firmemente que o sobrenatural lhes concedeu o direito de ocupar uma terra. O papa tem um papamóvel. As romarias são nos centros comerciais ao domingo à tarde e nas ofertas e promoções. O Pai Natal é patrocinado pela Coca-Cola e o Halloween, pelas abóboras. A globalização mistura as divindades exóticas com as dos panteões oficiais. Os cultos domésticos mudaram-se para a beira da televisão e do computador. O lugar da fé no sobrenatural é disputado pelos algoritmos e as aplicações. Deus é uma inteligência artificial e o inferno, em vez de enxofre, tresanda a CO2. A morte, como sempre, é uma assombração.
Álvaro Domingues
Álvaro Domingues é geógrafo, professor e investigador da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto e do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo (CEAU-FAUP). Entre outras obras, é autor de Portugal Possível (2022, com Duarte Belo), Paisagem Portuguesa (2022, com Duarte Belo), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (2015, com N. Travasso), A Rua da Estrada (2010), Vida no Campo (2012), Políticas Urbanas I e II (com N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011), e Cidade e Democracia (2006). É sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa. Escreve regularmente no jornal Público.
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