Quando falava de O Cerco (1970), António da Cunha Telles gostava de lembrar que, após a estreia em Lisboa, o filme tivera lotação esgotada durante três meses consecutivos, com três apresentações diárias. A que poderia dever-se tal sucesso de bilheteira? Desde logo, a vários sucessos anteriores. Poucos meses antes, O Cerco fora seleccionado para a Semana da Crítica, no Festival de Cannes, e tivera excelente recepção por parte da imprensa internacional. A actriz principal, Maria Cabral, tinha deixado uma impressão fortíssima, com muitos a assinalarem o carisma de uma estrela nascente. Cunha Telles recordava tudo isto com evidente alegria, desde logo porque o expressivo reconhecimento do filme contrastava em absoluto com as difíceis condições em que fora realizado. Enquanto produtor do Novo Cinema Português, debatia-se então com um quadro de falência iminente, e os meios de que dispunha eram escassos. A começar pelos vinte mil metros de película fora de prazo usados para filmar. Mas, como o realizador também lembrou em várias entrevistas e testemunhos, O Cerco nascera sob uma boa estrela, e tudo parecia conjugar-se para que fosse bem-sucedido. Até as más condições da película acabariam por proporcionar uma fotografia menos contrastada, o que não só acentuou a enigmática beleza de Maria Cabral como também conferiu uma luz menos dura aos ambientes lisboetas das filmagens.
Hoje, parece evidente que, além de tudo isto, houve algo mais, embora mais imponderável, a determinar o sucesso deste filme no qual uma jovem divorciada procura ter uma vida que seja sua, ao mesmo tempo que se descobre cercada, por vezes mesmo violentada, num quotidiano laboral inteiramente feito à medida dos desejos masculinos. Enquanto Marta vai entrando no meio das agências publicitárias, vemos o cerco que se fecha em torno dela por parte de homens para os quais a beleza feminina é essencialmente transaccionável e consumível. O trabalho de Marta na agência assenta na exploração da sua cativante sensualidade. “É preciso que o comprador te deseje primeiro a ti... e depois ao whisky, percebes?” — diz-lhe o amigo publicitário para justificar a necessidade de Marta estar menos vestida quando a fotografam com uma garrafa encostada ao rosto.
Neste mundo quase exclusivamente masculino, francamente machista, a ânsia de autonomia sentida por Marta e o seu desejo de liberdade individual são facilmente restringidos ao plano sexual. Vista como alguém capaz de suscitar subliminarmente o desejo e de o associar à aquisição de determinados bens de consumo, Marta arrisca tornar-se também ela consumível. Pelo menos, assim a vêem os publicitários que a rodeiam. Ora, o que é fascinante no filme de Cunha Telles — ironicamente também ele cheio de publicidade indirecta para fazer face aos custos da rodagem — é o facto de, a par da gritante desigualdade entre os géneros, ele nos deixar entrever um desajuste permanente, uma anomalia na forma como a personagem feminina vive o tempo. Ao cruzar-se com os homens que a cercam, Marta faz-lhes (e faz-nos) sentir a sua resistência passiva. A liberdade que procura não é certamente aquela que eles imaginam para ela, não é a autonomia relativa que lhe consentem. Talvez o sucesso de bilheteira de O Cerco em 1970 tenha vindo também daqui, pois o mundo interior que transparece dos breves gestos de resistência ou afirmação de Marta não coincide já com o papel que as figuras masculinas lhe atribuem. Através desse desajuste, dessa anomalia, o que entrevemos no filme é o fim de uma época, um desejo de fim. Certamente que o carisma de Maria Cabral, a actualidade do argumento, o erotismo de algumas cenas, os processos de filmagem, a música melancólica de António Victorino d’Almeida, a beleza da fotografia, tudo isso contou para o sucesso do filme. Mas os espectadores que acorreram massivamente à sala de cinema em 1970 por certo intuíam que aquele tempo de parálise em que Marta se desloca por Lisboa em círculos concêntricos prenunciava o fim de um estado de coisas. O Cerco foi rodado em 1969, já sob o efeito libertário de Maio de 1968. Por duas vezes, no filme, a incapacidade masculina de lidar com o erotismo feminino em contextos de assumida escolha por parte de Marta exprime-se pela violência física. Marta já não é meramente um objecto de desejo masculino, por muito que as técnicas publicitárias da sociedade de consumo a vejam como tal. Ela pertence a outro mundo, nascente, apesar do cinzentismo do Portugal marcelista. Pouco depois, em 1971, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa começarão a escrever em conjunto Novas Cartas Portuguesas, um livro que, proibido ao fim de três dias de circulação, as levará a tribunal sob acusações de pornografia e atentado à moral pública, mas também lhes vai granjear um fortíssimo apoio internacional. E em 1972, Luiza Neto Jorge publica com Jorge Martins O Ciclópico Acto, um vertiginoso poema-livro-de-artista em que a celebração do corpo eroticamente próximo contrasta com uma visão irónica das longínquas conquistas marítimas. O mundo mudava. Essa mudança perpassa no tempo circular em que Marta procura uma saída.
Rosa Maria Martelo
Ensaísta, investigadora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Doutorada em Literatura Portuguesa, tem privilegiado o estudo da poesia portuguesa e das poéticas modernas e contemporâneas. No âmbito da Literatura Comparada e dos Estudos Interartes, estuda as relações intermediais e transmediais da poesia moderna e contemporânea com as artes visuais e o cinema. Publicou O Cinema da Poesia (2012), Devagar, a Poesia (2022) e Matérias Difusas, Poderosas Coisas (2022). Coorganizou a antologia Poemas com Cinema (2010) e organizou a Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa (2021).
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