Timing, Dóra Maurer + La noire de…, Ousmane Sembène
“For honest work
You proffer me poor pay,
For honest dreams
You spit in my face,
And so my fist is clenched
Today —
To strike your face.”
Langhston Hughes, “Militant”.
La Panthère et le fouet. Paris: Ypsilon Éditeur, 2021, p. 74.
Em “Orphée Noir”, prefácio de Jean-Paul Sartre a Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française, editada por Léopold Sédar-Senghor em 1948, escrevia o filósofo francês: “O homem branco gozou durante três mil anos do privilégio de ver sem ser visto.” [1] La noire de…, opera prima no formato de longa-metragem do cineasta senegalês Ousmane Sembène, é um dos primeiros filmes, a par de Afrique sur Seine (Paulin Soumanou Vieyra, Mamadou Sarr e Jacques Melo Kane, 1955) e de Soleil Ô (Med Hondo, 1970), entre outros, a demolir o sistema de visão total e sem reciprocidade que, constituindo um dos mecanismos de dominação do sistema colonial, estruturou as suas relações de “saber e poder”, nomeadamente nos campos da etnografia e do cinema. Adaptação do conto homónimo de Sembène publicado na antologia Voltaïque em 1962, por seu turno inspirado num fait divers ocorrido em Antibes, na Côte d’Azur, quatro anos antes, La noire de… opera uma rotação do olhar, potenciada pelos modos de produção. A personagem de Diouana (Mbissine Thérèse Diop), jovem ama senegalesa, é um dispositivo de visão do colonizador e da antiga metrópole.
A realização, seis anos depois da independência do Senegal, desta co-produção franco-senegalesa inscreve-se no contexto histórico-político das descolonizações africanas. O processo de descolonização é, então, entrevisto amplamente, abrangendo as formas culturais e representativas, incluindo as formas cinematográficas, bem como as estruturas epistémicas.
Em 1965, num conhecido debate organizado por Albert Cervoni, Sembène acusara Jean Rouch de olhar os africanos como “insectos” [2]. A obra cinematográfica do realizador senegalês procura superar as limitações e os fundamentos da etnografia. Sembène busca forjar uma estética não-hegemónica, ainda que influenciada pelo cânone realista socialista com que toma contacto durante a sua formação no Estúdio Gorky, em Moscovo, no mesmo grupo que a realizadora franco- guadalupense Sarah Maldoror. Procura deslocar, em paralelo, a relação hierárquica e vertical entre sujeito e objecto que estrutura o sistema epistemológico e visual da modernidade ocidental dominante.
Filme dotado de uma importante dimensão auto-biográfica, já que Sembène fora estivador no Porto de Marselha, La noire de… problematiza a relação entre o antigo colonizado e o ex-colonizador, descartando qualquer concepção dualista e apontando para a transposição de estruturas coloniais de classe, raça e género para o espaço metropolitano. Na primeira sequência, quando Diouana chega a França, a Côte d’Azur é figurada como um cartão-postal. Essa inversão de forças, pela qual o território francês é representado segundo uma perspectiva senegalesa, afirma-se de forma premente nos modos enunciativos do filme, construído, ao contrário do que acontece no conto original, segundo o ponto de vista de Diouana. Não só a narração em voz-off é conduzida na primeira pessoa (atente-se na tensão entre imagem e som), como a jovem senegalesa devém uma observadora, crítica e desencantada, da paisagem natural e urbana e dos seus patrões franceses, denominados anonimamente como Madame e Monsieur. Essa deslocação enunciativa, que Jean Jonaissant define como uma prática “contra-etnográfica” [3], instaura um poderoso lugar de observação, o de uma mulher negra sobre a “civilização” patriarcal europeia, e abre caminho a uma estrutura narrativa entrecruzada, entre dois espaços e múltiplas temporalidades. É, porém, a perspectiva de Madame sobre Diouana que desencadeia o seu “olhar oposicional” [4]. O gesto final da jovem, confinada ao espaço doméstico do pequeno apartamento, entronca-se, segundo Jonaissant, na resistência histórica colectiva à escravatura e às formas de dominação colonial [5]. Transitando de um modelo de representação para um sistema de auto-representação, La noire de… opõe uma contra-perspectiva ao ponto de vista perceptivo e cognitivo dominante.
Também a curta-metragem Timing, da artista húngara Dóra Maurer, questiona a relação entre sujeito e objecto e ensaia a passagem para um sistema de auto-representação. Tendo começado a sua carreira no campo das artes gráficas, Maurer realiza as primeiras experiências no campo da fotografia e do cinema no fim da década de sessenta. Iniciando-se como uma performance de “cinema expandido” [6] e exemplificando a centralidade dos processos perceptivos na obra de Maurer, Timing resulta da aplicação de uma técnica de cobertura da câmara e da alternância das porções de película exposta. A própria artista, vestida de negro, dobra um lençol frente à câmara. O filme opera sobre um princípio não-naturalista de divisibilidade e fragmentação da acção e da sua representação, produzindo uma figuração compósita da performance. Se o princípio de repetição é inerente ao dispositivo de projecção cinematográfica, Timing debruça-se e expõe as condições materiais e “meta-psicológicas” [7] do cinema. A sua dimensão material e auto-reflexiva é indissociável do ensejo de suturar a excisão entre o observador e o observado, uma das separações que sustentou historicamente a epistēmē moderna e os sistemas de dominação. O princípio de repetição e diferença devém uma instância de profanação do gesto doméstico de dobrar o lençol, em linha com a recusa de Diouana de executar as ordens de Madame, activando, em paralelo, a posição enunciativa de Maurer e o lugar de observação do espectador. Tal como La noire de…, Timing inscreve-se num sistema de auto-representação que questiona os binarismos epistémicos e representativos.
Concebido para ser projectado num lençol, superfície de projecção que, ao duplicar materialmente o objecto representado, contribui para desnaturalizar a representação, Timing contraria o dispositivo museológico do White Cube que, desde o início do século XX, em consonância com a crescente abstracção da arte moderna e os pressupostos do modernismo, procura neutralizar e descontextualizar o espaço expositivo.
Em La noire de…, a espectral máscara africana era o único elemento que contrastava com a uniformidade cromática das paredes do apartamento, inserindo as cenas interiores num contexto político e cultural — as relações de classe, raça e género em situação (pós-)colonial. Também o White Cube invertido de Timing inscreve uma peça aparentemente formalista nos debates da política da representação do seu tempo, convocando, em particular, as problemáticas introduzidas pelos estudos feministas da década de 70.
A autora escreve segundo a antiga norma ortográfica.
[1] Sartre, Jean-Paul, “Orphée Noir”. Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue
française / ed. por Léopold Sédar-Senghor. Paris: PUF, 2015 (1948), p. IX, tradução da autora.
[2] “Tu nous regardes comme des insectes. Confrontation entre Sembène Ousmane et Jean Rouch”,
1965. Dérives. URL: http://derives.tv/tu-nous-regardes-comme-des/ [22 de Novembro de 2019],
tradução da autora.
[3] Jonassaint, Jean, “Le cinéma de Sembène Ousmane, une (double) contre-ethnographie (Notes
pour une recherche)”, Ethnologies, vol. 31, n.º 2, 2010, pp. 241–286, tradução da autora.
[4] Hooks, Bell, “The Oppositional Gaze. Black Female Spectators”. Hooks, Bell. Black Looks: Race
and Representation. Boston: South End Press, 1992, pp. 115–131, tradução da autora.
[5] Jonassaint, Jean, “Le cinéma de Sembène Ousmane, une (double) contre-ethnographie (Notes
pour une recherche)”, op. cit..
[6] Youngblood, Gene. Expanded Cinema. Nova Iorque: E. P. Dutton & Co., 1970, tradução da autora.
[7] Bellour, Raymond, Ciné-répétitions, 2015. Jeu de Paume, Le Magazine. URL: https://archivemagazine.
jeudepaume.org/2015/12/cine-repetitions-par-raymond-bellour-fren/index.html
[2 de Maio de 2022], tradução da autora.
Raquel Schefer
Investigadora, realizadora, programadora e professora associada na Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris), Raquel Schefer é doutorada em Estudos Cinematográficos pela mesma instituição — com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano — e mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine (Argentina). É autora do livro El Autorretrato en el Documental (Ediciones Universidad del Cine, 2008). Foi professora em diferentes universidades em França, em Espanha, na Argentina e no México e investigadora convidada na UCLA. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT. É coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana.
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