Murdering the Devil
Róisín Tapponi
4 de Janeiro de 2025

Murdering the Devil, filme dos anos 70 da realizadora Ester Krumbachová, subestimada arquiteta da Nova Vaga Checa, recentemente restaurado, é uma obscura exploração cómica e profundamente incisiva sobre o sentimento de posse masculino, as dinâmicas de poder e os limites da resistência e da tolerância nas relações românticas.

Esbatendo as linhas entre a alegoria surreal e a crítica social mordaz, o filme segue Ona (Jiřina Bohdalová), a protagonista, uma mulher cuja paciência e graça excecionais são colocadas à prova por um homem, o Sr. Diabo (Vladimír Menšík). O facto de o Sr. Diabo ser, literalmente, o diabo não preocupa Ona, profundamente investida na ilusão de romance e naquilo que, outrora, representou para ela. No entanto, ela debate-se cada vez mais com a dificuldade de conciliar os seus ideais românticos com a realidade nua e crua dos maus hábitos do seu companheiro. O Sr. Diabo é um glutão grosseiro e insaciável, com um sentimento asfixiante de posse, que acredita ser a última oportunidade de companhia para Ona, numa sociedade em que as mulheres solteiras e mais velhas são desvalorizadas. As suas transgressões vão desde as grotescas maneiras à mesa até às exigências implacáveis, em que roer a mobília é definitivamente um sinal de alerta, mas mansplaining Freud é ainda pior. Em última análise, ele não consegue vê-la como mais do que a pessoa que coloca na mesa — deliciosa e elaborada — comida e, por isso, não é capaz de retribuir com algo significativo.

Em confissões espirituosas, quase ao estilo de reality TV, a protagonista encara a câmara com uma honestidade crua, desvendando camadas de expectativas sociais e autossacrifício. A sua jornada torna-se não só um balanço pessoal, mas também uma crítica mais alargada às narrativas culturais que dizem às mulheres para aceitarem a sua condição: assentar, agradar, aguentar. Este mundo meticulosamente construído torna-se palco para uma aula de 47 pratos sobre as razões pelas quais os homens malcomportados merecem menos, com a protagonista a aperceber-se lentamente de que o amor que pensava querer pode ter menos a ver com um homem, que é praticamente uma projeção das suas próprias fantasias, e mais com a crença no seu próprio valor. A frustração de Ona vai crescendo até que a única saída é a vingança e o desejo de castigar o Sr. Diabo, não só por a fazer perder tempo — ela parecia gostar de passar o dia todo, todos os dias, a cozinhar — mas também por desperdiçar o seu amor, que vale muito mais. Subitamente, Ona começa a questionar-se: quanto é que, realmente, está disposta a suportar?

Ser seduzida espetacularmente por um namorado do inferno, literalmente, pode parecer um pouco datado para o público jovem de hoje, geralmente mais sensibilizado para o estabelecimento de limites e para a igualdade social entre géneros. Contudo, o filme continua extremamente moderno na sua questão da moralidade. O diabo é um mansplainer que nos encurrala numa situação romântica complicada? Que surpresa. No filme, o facto de o pecado estar constantemente a ser evocado e a mulher constantemente a sucumbir, não significa, de todo, que o compromisso extraconjugal que uma mulher mantém com o prazer e com um homem seja pecaminoso, mas que, de forma feminista e irónica, o verdadeiro pecado reside na satisfação de um homem assim tão mau. Apesar de o filme decorrer quase na totalidade dentro de um apartamento, observamos a paixão de uma mulher que não conhece limites, e as consequências dessa paixão quando é demovida. O filme é altamente solidário para com uma mulher que, devido à solidão, sacrifica tantos aspetos de si mesma para aturar um homem — mostrando como, ainda assim, Ona acaba por ter de suportar alguma forma de solidão.

Conhecida inicialmente sobretudo como figurinista e argumentista por detrás de filmes seminais como Daisies (1966), de Věra Chytilová, e Witchhammer (1968), de Otakar Vávra, a estreia de Krumbachová na realização concretiza-se numa sátira feminista bem escrita, tão audaciosa quanto visualmente impressionante. Murdering the Devil estreou durante o início da Normalização, quando a censura do Bloco de Leste reprimia as vozes mais inovadoras. Apesar do seu brilhantismo anárquico e do dinamismo visual, foi rapidamente enterrado pelo regime e relegado a décadas de obscuridade. Restaurado em 4K em 2023 pelo Festival de Cinema Internacional de Karlovy Vary, o Národní filmový archiv, e o Státní Fond Kinematografie, Murdering the Devil pode agora ser, finalmente, redescoberto com uma clareza de tirar o fôlego. O restauro, apoiado por Milada Kučerová e Eduard Kučera, mostra o humor do filme, o design vibrante e a visão duradoura da realização de Krumbachová.

Róisín Tapponi
Róisín Tapponi (n. 1999, Dublin) é uma escritora e programadora de cinema que vive em Londres. É fundadora da Shasha Movies, plataforma independente de streaming de filmes e vídeos de artistas do Sudoeste Asiático e do Norte de África. Já fez curadoria de programas de cinema para The Academy, MoMA, 52 Walker St. David Zwirner, e-flux, Anthology Film Archives, Film Forum, Metrograph, Frieze, Chisenhale Gallery, Art Jameel, entre outros. Concluiu um doutoramento em História da Arte na Universidade de St. Andrews.

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