O impacto de ver Mudar de Vida (1966), na sua cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa, é avassalador, como um voltar a casa. A consistência dos espaços, dos personagens, da arquitectura, tal como o trabalho da luz, a acentuação dos céus cinzentos e da neblina, o contraste entre o mar e o lugar periférico do pinhal permitem uma viagem que recupera imagens míticas de certos arquétipos, uma arcádia original. E, no entanto, este filme rodado no Furadouro, uma praia de pescadores onde metaforicamente o mar vai conquistando a terra, representa, desde logo, um certo presente, com os seus autocarros, a vida operária, a presença da cidade. No centro do drama estão as relações sentimentais, difíceis e ambíguas que unem um pescador, Adelino (Geraldo Del Rey), de regresso da guerra em África, e duas mulheres, Júlia (Maria Barroso), uma mulher do mar, e Albertina (Isabel Ruth), uma operária misteriosa e independente. Voltando do Ultramar, Adelino encontra Júlia, a sua antiga namorada, casada com o seu irmão. Segundo o resumo original do filme, "as lutas pela sobrevivência, contra o mar e a tradição, marcam esse conflito amoroso e a paixão que renasce, para Adelino, quando é atraído pela natureza selvagem da jovem Albertina. Terra, mar, Homem e progresso interligam-se num drama constante.” O aspeto documental é, e neste filme ainda mais, um poderoso artifício cinematográfico e de jogo com o real: as cenas da pesca da arte de Xávega, filmadas a partir do ponto de vista dos remadores, o interior das casas, a festa de S. João, criam uma estranheza e um exotismo que, ao mesmo tempo, remete para uma ideia de que, mesmo vivendo aquele quotidiano, é dentro da vida que se encontram os lugares de fuga ao mundo que há. Percebemos e sentimos na pele o fascínio pelo universo dos pescadores, em contraste com uma breve incursão no mundo operário, com os seus testes banais para escolher aqueles que são aptos para o trabalho da fábrica, como na cena em que Adelino procura escapar àquele lugar tomado pelo mar da faina. É ali, na fábrica, que reencontra Albertina, uma maravilhosa Isabel Ruth, que corresponde, no filme, ao protótipo da mulher urbana e, de certo modo, marginal, enquanto Júlia corresponde ao modelo da rural, trabalhadora, fiel, dedicada à casa e aos filhos, com uma espécie de destino fatal de ficar amarrada a um corpo que é trabalho, ferramenta. Albertina quer sair, emigrar, ir embora, “mudar de vida”, Júlia é a que pertence ao lugar, a que fica, a que mantém a casa. O pano de fundo é a emigração, que nos anos 60 afetara profundamente o tecido social e cultural português, mas o filme é também a infância de Rocha, e como ele próprio contou, anos antes de morrer, a história fala “de uns homens que eram uns gigantes, uns conquistadores vikings, rudes, a cheirar a aguardente”. “Eu tinha uma grande admiração por eles. Os meus primos achavam que o povo eram pessoas burras, mas aquilo era tão bonito e, ao mesmo tempo, tão forte, eu queria fazer um monumento àquilo, porque aquilo ia acabar. O meu pai era lavrador, levava broa e colchões e, quando acabavam as colheitas, ia para a beira-mar, naquela paz espantosa, ver o mar e o sol. Depois, o meu pai emigrou para o Brasil. De 1960 até agora volto sempre ao tema do S. João. Está sempre lá aquele S. João que eu vivi. Para mim, documentário e ficção são como a mão esquerda e a mão direita, e é preciso as duas.” O filme joga-se assim entre a ficção, o documentário e a autobiografia. Mas faz ainda parte de uma longa linha identitária do nosso cinema, uma sequência que começa no início dos anos 30, com Nazaré, Praia de Pescadores e Maria do Mar, de Leitão de Barros, mais tarde, nos anos 40, com Alla Arriba e, em rutura com este olhar, Nazaré (1952), de Manuel Guimarães e Almadraba Atuneira (1960), de António Campos. Trata-se de filmes em que a dependência do mar caracteriza um certo olhar que se radicaliza, revelando uma forma de vida vista como quase de subsistência. A esta ideia associa-se a de comunidades que dependem das agruras da natureza e são, por isso, representadas com um discurso sobre a força e a coragem. Se nos primeiros a figura do simples e honrado pescador é valorizada pelo discurso e ideologia oficiais do regime, numa atitude de representação épica da grandeza marítima do passado, nos outros o pescador pode ser a figura da fragilidade, da dúvida existencial, da dor e do amor. E as personagens deste filme são complexas, perdidas, à procura de um sentido para o viver.
Assim, a experiência de estar com os pescadores e a memória associada a uma infância passada no litoral parecem ser uma marca do filme. Do mesmo modo, o apelo de um certo arcaísmo, a felicidade transmitida pela paisagem natural, o movimento de aproximação a esta paisagem simbólica pode também ser entendido enquanto recusa de um décor, de um mundo artificial. O filme transforma a pura ilusão da paz e harmonia alicerçada na paisagem numa experiência mais complexa, de industrialização, um mundo mais real do que a visão idílica desse mesmo mundo, uma contra-força. A ideia de nostalgia, retorno a uma idade de ouro, assim como a de uma relação harmoniosa com a natureza e das pessoas de uma comunidade, contrastam aqui com estas figuras trágicas associadas com um modo de vida duro, numa tensão entre um cinema com uma visão onírica e poética e uma outra mais realista e documental. Trata-se de operar no domínio da imaginação a partir do mundo real, para assim aceder a uma espécie de anterioridade da vida do povo. Mudar de Vida esteve em Berlim, Veneza e Cannes, e continuará sempre a ser um lugar para perceber o cinema português como independente, marginal, subversivo.
Catarina Alves Costa
Catarina Alves Costa é realizadora e antropóloga, doutorada pela na Universidade Nova de Lisboa com a tese “Camponeses do Cinema. Representações da Cultura Popular no Cinema Português”. Realizou, entre outros filmes, Margot (2022), Pedra e Cal (2016), Falamos de António Campos (2010), Nacional 206 (2009), O Arquiteto e a Cidade Velha (2004) e corealizou Um Ramadão em Lisboa (2019). É Professora Auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e Coordenadora do Mestrado em Antropologia — Culturas Visuais e do LAV — Laboratório Audiovisual do Centro em Rede em Antropologia (CRIA). É autora do livro Cinema e Povo (2022, Edições 70).
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